A agricultura familiar e seus valores: perspectivas para um outro desenvolvimento

Resumo: O presente artigo discute a dinâmica histórica e cultural do Rural brasileiro, enfatizando as formas de agir e viver do Agricultor Familiar. Investigam-se fatores de caráter social e cultural altamente específicos dos agricultores familiares e suas relações com perspectivas de desenvolvimento agrícola alternativas às propostas originárias da Revolução Verde, tendo por pano de fundo o acesso à terra como direito constitucional fundamental.

Palavras-chave: agricultura familiar – progresso – modernização – valores.

Abstract: This article discusses the historical and cultural dynamics of the brazilian Rural. The ways of acting and living of the brazilian Family Farmer are investigated as highly specific social and cultural characters. These elements are analyzed as an alternative agricultural development.Keywords: brazilian Family farmer – progress – modernization – values.

Sumário: 1.Introdução. 2. A ideia de desenvolvimentonaAgriculturaBrasileira: breve panorama histórico. 3. As formas de agir e viver do Agricultor Familiar comoelementosvalorativos para um outro desenvolvimento. 4. Conclusão. Referências

Introdução

O presente trabalho parte da ideia de que a “modernização da agricultura” é reflexivamente, produto da organização dos recursos agrícolas, do cálculo de racionalidade e planejamento econômico, mas, sobretudo,decorrência de elementos históricos altamente específicos,determinantes da construção social do uso e da apropriação de recursos privados e públicos.

No caso do Brasil, essa trajetória é marcada pelo período pós-1965, em que os anseios de “modernização da agricultura” foram profundamente vinculados à ideia de progresso. A implantação da Revolução Verde, através de um amplo programa de crédito e outros incentivos governamentais, consolidou a concepção de progresso no campo como produção baseada na combinação intensiva de tecnologia, capitais e informações. Nesse contexto, a agricultura familiar foi associada à ideia de atraso, de passado e, mesmo, de pobreza.

Por esse viés, o presente artigo discute de que forma os valores inseridos na agricultura familiar possibilitam um desenvolvimento social e econômico divergente, ou pelo menos diferente, da proposta da Revolução Verde e seus atuais desdobramentos.

No tocante ao Direito Constitucional, essa discussão tem por pano de fundo a função social da propriedade e a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF/88) que legitimam, do ponto de vista jurídico e social, oesforço para constituir a terra como “um lugar de vida e de trabalho, capaz de guardar a memória da família e de reproduzi-la para as gerações posteriores” (WANDERLEY, 1999, p.11).

Para tanto, apresentamos um breve panorama sobre a ideia de desenvolvimento na agricultura brasileira para, em seguida, discutir questões valorativas ligadas às formas de agir e viver do agricultor familiar. O objetivo é analisar como se manifesta o papel da agricultura familiar para a mudança nas relações humanas, econômicas e sociais do campo e da sociedade, enfatizando reflexamente a diversidade cultural e social preconizada na Constituição Federal de 1988.

I.A ideia de desenvolvimento na Agricultura Brasileira: breve panorama histórico

A combinação de mão-de-obra escrava, primeiramente indígena e depois africana, aplicada ao cultivo monocultor da cana-de-açúcar, constituiuo primeiro ciclo econômico do Brasil-colônia e a origem de uma estrutura agrária socialmente excludente, predatória de recursos naturais e concentradora do acesso à terra (WANDERLEY, 1995; GIRARDI, 2008).

A concepção de desenvolvimento mercantilista do Estado Moderno Português – cuja lógica básica foi promover o exclusivo comercial para garantir o equilíbrio da balança comercial lusa e a acumulação bulionista– iniciou o ciclo de aproveitamento econômico das terras brasileiras, que ao longo de séculos, mantém-se dentro de pactos de poder político e social, nos quais “a grande propriedade, dominante em toda a sua História, se impôs como modelo socialmente reconhecido”. Em tal cenário, aagricultura familiar sempre ocupou um lugar secundário e subalterno na sociedade brasileira. Quando comparado ao campesinato de outros países, foi historicamente um setor "bloqueado", impossibilitado de desenvolver suas potencialidades enquanto forma social especifica de produção” (WANDERLEY, 1995).

Partindo de tais precursores históricos, sem ignorar as peculiaridades de cada período, mas lançando um olhar panorâmico sobre o trajeto da institucionalidade estatal, o processo de “consolidação da tradição autoritária do Estado brasileiro”constituiu uma “barreira à construção da ação coletiva” na luta por direitos, inclusive o de acesso à terra. Em épocas mais recentes, ao findar da Ditadura Militar (anos 80 do século XX), a implementação desses direitos, conquistados por ocasião da Constituição de 1988, foi dificultada no início do período neoliberal em toda a América Latina, nos anos 1990 (BALESTRO, MARINHO E WALTER, 2011a).

Em síntese, do período colonial à república contemporânea, o quadro de especificidades no campo brasileiro pode ser caracterizado pela incorporação de novas terras somada à concentração fundiária. Em termos numéricos, o índice de Gini em 1992 que era de 0,826 apresentou decréscimo de apenas 0,010 para o ano de 2003 (GIRARDI, 2008), mostrando a persistência e atualidade do caráter excludente do modelo brasileiro.

Esse modelo é fruto do desenvolvimento pensado a partir do atrelamento da estrutura econômica à organização político-social, em condições originalmente mercantil-coloniais que se reatualizam e se mesclam a novos elementos. Na reinvenção do velho, o uso da terra e seus recursos sob uma lógica fortemente capitalista (guardadas as devidas diferenças de tempo e espaço históricos) trazem consigo a essência do modelo mercantil-colonial que, de forma excludente e concentradora, está focada nas “regras de como e o que produzir para exportar” (GIRARDI, 2008, p.75), compondo “o conjunto de questões estruturais que barram outro modelo de desenvolvimento para o país” (GIRARDI, 2008, p.74).

Exemplo dessa reatualização é a Revolução Verde, como projeto imposto ao conjunto da sociedade, sob o argumento de que seria a portadora do progresso para todos, subordinando a agricultura à indústria, pelo complexo agroindustrial. Sob a égide da Revolução Verde, a agricultura brasileira deveria cumprir algumas funções para o projeto de desenvolvimento industrial, tais como liberar mão-de-obra, fornecer alimentos e matérias-primas para aumento da oferta e diminuição dos preços na indústria, transferir capital e gerar divisas, aumentar o incremento tecnológico e a produtividade com apoio do arcabouço institucional do crédito rural, pesquisa agrícola, preços mínimos e extensão rural (KAGEYAMA, 1990; BRESSER, 2009).

Essa concepção, no fim da década de 1990, sofreu questionamentos. O modelo de desenvolvimento neoliberal, imposto através de órgãos internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, buscou solucionar os problemas causados pelo capitalismo por meio das próprias regras capitalistas. Contudo, as críticas a tal paradigma de estado passariam a indicar uma outra via, a do desenvolvimento intolerável aos olhos do capitalismo, já que este modelo contraria suas regras (GÓMEZ, 2006; GIRARD, 2008). Esse momento de questionamento também foi decisivo para que se evidenciasse que as democracias desenvolvidas não precisariam seguir um único modelo econômico — o modelo de mercado norte-americano, reforçando as peculiaridades de outros modelos: o modelo social europeu, o modelo desenvolvimentista asiático ou japonês e o modelo misto de capitalismo latino-americano (BRESSER, 2009).

Esses modelos, porém, não se consolidaram pacificamente no Brasil, mas em meio a lutas de resistência de diversas categorias sociais, a exemplo dos Agricultores Familiares. Esses agricultores lutam e resistem através de ocupações, mobilização e organização social em entidades e, principalmente, pela reprodução de suas formas de agir e viver no campo. A criação de assentamentos rurais e aprópria recriação do campesinato são manifestações de luta por terra, como lugar de vida e dignidade (SAUER E CASTRO, 2012).

Tais especificidades nos mostram a existência de diferentes capacidades de resistência e adaptação de categorias sociais, frente às condições do campo brasileiro. As formas de resistência da Agricultura Familiar trazem consigo respostas à imposição de modelos de desenvolvimento baseados nos valores da Revolução Verde e, como formas de agir e viver, representam novas perspectivas de desenvolvimento para o rural e para o nacional.

Nesse contexto, como “resultado da capacidade de iniciativa, adaptação e resistênciada própria população do campo” aos processos locais e mais gerais da sociedade (SAUER, 2009), os agricultores familiares foram reconhecidos e vêm se firmando como atores sociais responsáveis pela produção da maior parte dos alimentos consumidos no Brasil (CASTRO, 2013).Embora não se possa falar em um projeto de desenvolvimento “exclusivo” da Agricultura Familiar, é possível identificar nas peculiaridades culturais do agricultor familiar, elementos implícitos à sua forma de agir e viver, que apontam para formas sustentáveis de desenvolvimento social e econômico, tanto no rural, quanto no nacional.

Trata-se de um processo histórico reflexivo, pois a “agricultura familiar que se reproduz nas sociedades modernas deve adaptar-se a um contexto socioeconômico próprio destas sociedades, que a obriga a realizar modificações importantes em sua forma de produzir e em sua vida social tradicionais” (WANDERLEY, 1996, p. 2). A compreensão dessa dimensão de desenvolvimento diferenciado exige, contudo, que se avalie o ambiente institucional em que essa categoria se insere e a forma com que seu sistema de valores se relaciona com ele.

II. As formas de agir e viver do Agricultor Familiar comoelementosvalorativos para um “outro desenvolvimento”

A modernização da agricultura brasileira foi uma imposição baseada no argumento de um projeto pretensamente portador do progresso (KAGEYAMA, 1990). Esse processogarantiu “àclasse média a inserção no circuito global de consumo” reforçando o uso da terra e seus recursos sob uma lógica fortemente capitalista, à medida que se tornaram centrais “as regras de como e o que produzir para exportar” (GIRARDI, 2008, p.75).

Embora essa lógica pareça evidente suas formas assumem, sob as condições modernas, aspectos diferentes de todas as suas versões anteriores e, portanto, há que se considerar variedades do capitalismo ao conceituar as diferenças entre os tipos modernos de capitalismo (HALL E SOSKICE, 2001). Essa é uma importante especificidade para compreender, de forma mais global e comparativa, as forças que regeram e regema dinâmica da modernização da agricultura.

Por esse viés, a modernização do campo no Brasilse desenvolveu no contexto de uma economia de mercado hierárquica, na qual o ambiente institucional foi determinado pela ausência de relações de emprego de longo prazo, baixos níveis de sindicalização, poucos investimentos em qualificação profissional e uma grande distância de poder entre os trabalhadores e suas representações. O elevado grau de hierarquia ocorre nas relações entre trabalhadores e empregadores, assim como nas relações entre os próprios empregados. Somam-se a essas características o elevado grau de informalidade, a alta rotatividade e a alta taxa de desemprego aberto (KAGEYAMA, 1990; BRESSER, 2009; IBGE, 2007; SCHNEIDER, 2009).

Em termos comparativos, se as economias de mercado liberais enfatizaram os processos de coordenação guiados pelos mecanismos de mercado (os EUA são o paradigma), as economias de mercado coordenado lograram o êxito da concertação entre seus agentes, como ocorreu na Alemanha. Porém, no caso do Brasil vigoram estruturas conflitantes de capitalismo, como versões intermédias dos tipos ideais (SCHENEIDER, 2009).

Essa variedade de capitalismo, com princípio alocativo nas hierarquias, foi, entre nós, um importante fator que reforçou o campo como o espaço em que as instituições geram mais assimetrias socioeconômicas que complementaridades funcionais. Ou seja, por um lado ele foi capaz de viabilizar a inserção global nos mercados, aumento da produtividade e competitividade econômica através do agronegócio, mas, por outro, bloqueou a resolução de problemas históricos como as desigualdades sociais de acesso à terra, a insegurança alimentar, ainsuficiência de serviços públicos no campo, a deficiência de infraestrutura física em áreas mais pobres, a baixa captação de crédito por agricultores familiares, confluindo, em última análise, para um processo crônico de concentração de riquezas. Dessa forma, “a ideia de desenvolvimento econômico é um simples mito”, que possibilita desviar as atenções da tarefa básica de identificação das necessidades fundamentais da coletividade, para concentrá-las em objetivos abstratos como são os investimentos, as exportações e o crescimento” (FURTADO, 1974, p.75).

Ainteração dessas condicionantes com fatores políticos e sociaisfavoreceram a associação entre progresso e escala da propriedade, segundo a qual apenas os grandes proprietários puderam beneficiar-se das somas consideráveis de recursos públicos a ele destinados, reforçando a tendência histórica de concentração da terra.Tais assimetrias condicionaram o apropriamento do termo agronegócio como conceito-síntese da eficiência, eficácia, tecnologia, capitais e informações do setor produtivo rural comprometido com a modernização conservadora, identificando a agricultura familiar como conceito-síntese do atraso, da força braçal e da ineficiência.Esse modelo de desenvolvimento dicotômico favoreceu a produtividade, sem distribuição de capital, tecnologia e informação em desfavor da agricultura familiar.

Assim, considerando as mazelas de nossa variedade de capitalismo, as dificuldades de conciliar êxito econômico e social, bem como a fragilidade do “enforcement”, temos que o ambiente institucional em que os agricultores familiares se inseremé o de uma modernidade que reproduziu formas tradicionais de dominação e de exclusão social. De um lado, restringiu-seaos trabalhadores não-proprietários o acesso à terra e, de outro, tornou-seo crédito e a tecnologia inalcançáveis aos pequenos proprietários descapitalizados ou em descapitalização. O resultado disso é que, em 2004, a população rural representava 17,1% do total, mas 31,5% do total dos pobres estavam na área rural, evidenciando “relações de força profundamente assimétricas que são assim reproduzidas”(SAUER, 2009, pp. 10/11).

Ao mesmo tempo em que propicia concentração de terras, crédito e tecnologia, esse ambiente institucional retroalimenta formas de resistência e luta, através do “esforço para constituir um “território” familiar, um lugar de vida e de trabalho, capaz de guardar a memória da família e de reproduzi-la para as gerações posteriores” (WANDERLEY, 1996, p.11). Existem condições de pressão social intensas, haja vista que no campo brasileiro, onde vivem apenas 18,8% da população, foi registrado um êxodo rural de 4,2 milhões de pessoas no período 1991-2000 e a extinção de 1,5 milhões de postos de trabalho no campo no período 1996-2006 (IBGE, 2006).

Essas tensões provocamformas de resistência na forma deluta pela terra, tanto como movimentos de ocupação para acesso ao recurso produtivo, como na forma de resistência cultural.A ideia de desenvolvimento da agricultura brasileira foi baseada num projeto de modernização econômica e tecnológica, através da capitalização do latifúndio com recursos públicos. Isso representou a sistemática exclusão do agricultor familiar do acesso à terra e seus recursos, não somente pela construção de pactos políticos excludentes, direcionados a capitalistas urbanos, oligarquias e setores patronais capitalizados. Tais categorias, além de historicamente empoderadas, possuem valorações adequadas à “aliança entre o capital e a terra”, ao passo que o agricultor familiar está culturalmente inserido numa outra lógica de aproveitamento do capital e da terra, no qual a renda e o lucro são elementos componentes e não norteadores de suas decisões.

Nesse cenário, a Constituição Federal de 1988 é um importante marco para os discursos e lutas das diversas categorias sociais relacionadas à disputa por terra. Com a Letra Magna de 1988, o princípio da função social assumiu novas significações. Ou seja, o debate sobre a questão agrária passou a considerar, do ponto de vista jurídico, que a função social da terra tem por fundamento a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Portanto, a Constituição Federal de 1988 deu importante passo na institucionalização dos direitos fundamentais no Campo à medida que reconheceu que o acesso legítimo à terra ocorre nos estritos limites da utilização adequada, portanto, a posse agrária é que passou a legitimar a propriedade agrária em sede constitucional. (COMPARATO, 2000; FACHIN, 2000; PEREIRA, 2000; MOLINA, 2002). Assim, dispõe o artigo 186 da Carta Magna:

“Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”

Posto nesse ambiente institucional, o agricultor familiar avalia as condições de produção para além de instrumentais jurídicos ou econômicos, típicos da agricultura capitalista, incorporando “uma diversidade de situações específicas e particulares” (WANDERLEY, 1996, p.2).É por essa especificidade que se manifesta o papel revolucionário da agricultura familiar para a mudança nas relações humanas, econômicas e sociais do campo e da sociedade. Isto é, sua forma de agir e vivenciar representa uma alternativa ao desenvolvimento baseado no binômio capital-terra, voltando-se para uma via de desenvolvimento sustentável e instrumentalizado por uma “reforma agrária de feição especialmente modernizadora, não somente do ponto de vista econômico, mas como superação de relações de dominação” (SAUER, 2010).

Há, portanto, uma racionalidade intrínseca ao agricultor familiar, que ultrapassa o pacto capital-terra, criando novas visões sobre o que seja desenvolvimento econômico, social e político. A percepção das vantagens ou desvantagens do ambiente institucional estão submetidos a um arranjo de cosmovisões[1] que se insere em uma unidade que, do ponto de vista operacional e cultural é, ao mesmo tempo, estrutura de produção, de consumo e de reprodução sociocultural.  Ideias como progresso, desenvolvimento e modernização estão vinculadas à produção combinada de valores de uso e de mercadorias, objetivando para além da renda,do lucro ou da comercialização, a reprodução social das cosmovisões (CASTRO, 2013).

Essa peculiaridade na forma de lidar com recursos e promover o desenvolvimento não passa ao largo da Constituição Federal de 1988. Elementos como artes, memória coletiva e repasse de saberes se relacionam ao conceito antropológico de cultura, à dignidade da pessoa humana e ao terreno comumente reverenciado como cultura pelo direito brasileiro, devendo ser considerado que: “cultura para o mundo jurídico é a produção humana juridicamente protegida, relacionada às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes, e vinculada ao ideal de aprimoramento, visando à dignidade da espécie como um todo, e de cada um dos indivíduos”. (CUNHA FILHO, 2004, p. 49)

É nesse sentido que a orbe constitucional alcança a agricultura familiar como espaço de manifestação cultural peculiar e legitimamente protegida. A família, como proprietária dos meios de produção, trabalho na terra, valores e tradições (patrimônio sociocultural) em torno da e para a família (TEDESCO, 2001) criam valorações de base cultural, acerca da relação de trabalho, do grupamento afetivo e da visão da terra como lar. Noutras palavras, todo processo de desenvolvimento do agricultor familiar se baseia na reflexão e no exercício de opções econômicas e políticas profundamente orientadas por fatores de caráter social e cultural altamente específicos (CASTRO, 2013).

A renda ou o lucro seriam aspectos componentes das decisões, mas não orientadores delas, conforme atestam inúmeros estudos de caso. A “integração ao mercado e a garantia do consumo” –fundamental para a constituição do “patrimônio sociocultural” da agricultura familiar– estão combinados em formas desaber específico, transmitido através das gerações sucessivas e que serve de base para o enfrentamento – vitorioso ou não – da precariedade e da instabilidade da estrutura rural. É este saber que fundamenta a complementação e a articulação entre a atividade mercantil e a de subsistência, efetuada sobre a base de uma divisão do trabalho interna da família ou da prática do “princípio da alternatividade”, formulado por Garcia (1989).Isso na prática cria, por exemplo, a distribuição de glebas no seio da família fora de uma lógica rígida de venda ou troca de lotes. Àmedida que ocorrem reconfigurações na organização social da família, caso das uniões matrimoniais, o núcleo familiar redistribui recursos entre si, orientando-se por valores que partem da necessidade de produzir e sobreviver no mercado, mas centralmente orientados pela ligação afetiva com a terra, manifestos pela manutenção de vínculos comunitários e familiares na distribuição espacial das glebas, pela proximidade para a cooperação de esforços no trabalho, a convivência diária do núcleo, etc (WANDERLEY, 1996).

Conclusão

A conservação e transmissão de um patrimônio sociocultural constitui um modelo original, constitucionalmente protegido, que exerce “um papel fundamental no modo de funcionamento da agricultura familiar”. (LAMARCHE, 1993;13). Da centralidade da família, como portadora do esforço de trabalho e detentora dapropriedade, tanto quanto, definidora das necessidades de consumo, decorre a importânciaque assume a evolução de sua composição (CHAYANOV, 1974), como um elemento chave do próprio processode transformação interna da unidade família/estabelecimento.

As valorações acerca da relação de trabalho, do grupamento afetivo e da visão da terra como lar são racionalidades adicionais, consideradas pelo agricultor familiar no momento de decidir, organizar e produzir. Ele centraliza sua decisão em elementos para além do lucro, da renda ou da segurança da propriedade – fatores que evidenciam visões diferentes do modelo de desenvolvimento (anterior à Constituição Federal de 1988) e proposto a partir da Revolução Verde (na década de 1960), centrada na concentração de terras, capital e informação, de maneira excludente (CASTRO, 2013).

Assim, argumentos puramente econômicos (renda da terra) ou argumentos somente jurídicos (segurança ou insegurança do direito de propriedade) não são suficientes para compreender os desafios do “desenvolvimento” rural, se considerarmos as visões de mundo peculiares dos agricultores familiares– especialmente no que tange ao acesso à terra, valorada reflexamente como lugar de vida, de cidadania e de direitos fundamentais.

Esse “apropriar e perceber” se dá por oposição e diálogo entre realidade exterior e realidades individuais, que encontram na Constituição Federal de 1988 elementos de legitimação da diversidade cultural na relação do agricultor familiar com a terra. Os Princípios da Dignidade Humana e da Função Social reafirmam na atual ordem constitucional os agricultores familiares como sujeitos e produtos da história, das lutas sociais e das experiências acumuladas.

Referências
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Nota:
[1]Neste caso, é o modo pelo qual o agricultor familiar vê ou interpreta a realidade. A palavra alemã é weltanschau-ung, que significa um ‘mundo e uma visão da vida’, ou ‘um paradigma’. É a estrutura por meio da qual a pessoa entende os dados da vida. (Geisler, 2002).


Informações Sobre o Autor

Luis Felipe Perdigão de Castro

Mestre em Agronegócios Universidade de Brasília Bacharel em Direito Universidade Federal de Ouro Preto advogado OAB/DF professor do Centro Universitário de Desenvolvimento do Planalto Central UNIDESC e ex-assessor de Juiz na Comarca de Luzinia/GO


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