Reflexões sobre o direito à busca da felicidade no ordenamento jurídico pátrio

Resumo: O presente trabalho objetivou investigar a normatividade do direito à busca da felicidade. Para tanto, primeiramente buscou-se analisar o objeto de tutela jurídica desse direito, utilizando-se dos julgados da Suprema Corte brasileira nos quais se utilizou desse direito como fundamento das decisões. Em seguida, buscou-se investigar a natureza jurídica do direito à busca da felicidade, partiu-se da teoria dos status gerados pelos direitos fundamentais de Jellinek. A partir das análises feitas, concluiu-se que o direito à busca da felicidade estaria previsto em nosso ordenamento constitucional decorrente da cláusula geral de proteção à dignidade da pessoa humana, inserindo-se entre os direitos fundamentais. Em relação a sua natureza, concluiu-se que o direito pesquisado pode exigir tanto uma abstenção quanto uma ação positiva estatal. No seu núcleo essencial, foi possível afirma que o direito pesquisado protege um lado existencial do ser humano, não tutelado por outros direitos. É possível deduzir tal conclusão dos julgados da Suprema Corte que tratava do reconhecimento da união estável homoafetiva, da Lei de Biossegurança e do divórcio. O tema, de todo modo, merece maiores reflexões para que seja clareado o seu sentido normativo.

Palavras-chaves: Direito. Felicidade. Normatividade. 

Abstract: This study aimed to investigate the normativity of the right to pursuit of happiness. Therefore, first we attempted to analyze the legal protection of the right to object, using the trial of the Supreme Court in which the Brazilian was used this right as the basis for their decisions. Then we sought to investigate the legal nature of the right to the pursuit of happiness giving birth to the theory of status generated by the fundamental rights of Jellinek. From the analyzes, it was concluded that the right to pursuit of happiness would be provided for in our constitutional system as a consequence of the general principle of protection of human dignity, inserting themselves among the fundamental rights. In relation to nature, it was concluded that the right researched may require either abstention as a state affirmative action. In its essential core, it is concluded that the law protects searched an existential side of human beings, not tutored by other rights. It can be deduced that conclusion mainly of justices recognition of stable homosexual union, the Biosecurity Act and the divorce. The issue, in any case deserves further reflection to be cleared its normative sense.

Keywords: Right. Happiness. Normativity.

Sumário: 1. O direito à busca da felicidade no ordenamento jurídico pátrio: noções introdutórias. 2. Objeto do direito à busca da felicidade. 3. A natureza do direito à busca da felicidade: uma análise a partir da teoria dos status de Jellinek. 4. O direito à busca da felicidade e a possibilidade de restrição. Conclusão. Referências

1. O direito à busca da felicidade no ordenamento jurídico pátrio: noções introdutórias

Embora não tenha previsão expressa no ordenamento pátrio, o direito à busca da felicidade tem aparecido em diversos julgamentos do Supremo Tribunal Federal como fundamento de suas decisões. Dentre os julgados, destacam-se a ADI 3.300, que tinha por objeto o art. 5º da Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), e ADPF 132, que tratou do reconhecimento da união estável homoafetiva. Na ADI 3.300, a Suprema Corte analisou a constitucionalidade de utilização de células-tronco embrionárias que vinha previsto no art. 5º da Lei de Biossegurança. No julgamento da ADPF 132, estava em julgamento à equiparação da união estável homoafetiva as uniões heteroafetivas. Em ambos os julgados, a Excelsa Corte utilizou o direito à busca da felicidade para fundamentar a decisão. Embora esses dois julgados tenham se destacados, há outras decisões que citam o direito à busca da felicidade, como SE 6467, que tratou de homologação de sentença estrangeira de divórcio, e RE 431.996, que tratava continuidade do recebimento de proventos por servidores públicos, tendo a declaração de inconstitucionalidade da lei estadual que fundamentava o benefício.

Deve-se acrescentar que o direito à busca da felicidade aparece em alguns documentos históricos importantes e atualmente vem previsto em algumas constituições. Entre os documentos históricos que expressamente tratam do direito à busca da felicidade está a Declaração de Direitos de Virgínia de 1776 (arts. 1º, 3º e 15), nascida no contexto de Independência dos Estados Unidos. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, produzida no auge da Revolução Francesa e com influência da declaração anterior, faz também expressa menção, em seu preâmbulo, ao direito à busca da felicidade. Na atualidade, o direito à busca da felicidade está previsto nas Constituições da República do Butão, Japão e Coreia do Sul. Na Constituição da República do Butão há inclusive o conceito de Felicidade Nacional Bruta – FNB (Gross National Happiness – GNH), que é usado em substituição ao PIB – Produto Interno Bruto.

Feitas as considerações acima, importante analisar esse direito, buscando delinear o seu objeto, estabelecer em qual categoria de direito se insere, bem como investigar os limites desse direito.

2. Objeto do direito à busca da felicidade

Ao tratar do direito à busca da felicidade, uma questão de grande relevo é a definição do objeto de sua tutela. Em algumas análises, o direito à busca da felicidade é identificado como direito à própria felicidade. Estaria próximo em se reconhecer ao titular do direito a garantia de um estado de felicidade, fazendo nascer um dever correspondente. Esse dever, que seria a face oposta do direito, recaia contra o Estado e a coletividade. Essa concepção do direito à busca da felicidade se assenta em um projeto coletivo de felicidade. É nesse sentido a manifestação de AGUIAR: “Indubitável que o evolver do direito à felicidade, no espaço público-institucional, somente ocorre em uma dimensão ética e comprometida com o projeto de felicidade alheio. Não se pode ser feliz em meio à infelicidade alheia- salvo a patologia do egoísmo, que contrasta com o princípio da solidariedade” (2008, pag. 113-114).

Ao reconhecer que esse direito garantiria a própria felicidade, haveria a necessidade de se conceitua-la, vez que seria o próprio objeto da tutela. Nesse sentido, vários autores buscam definir o que seria felicidade, passando por definição como prazer, honra, riqueza, saúde, em conceitos modernos, como aponta Erick Silva (ERICK, 2013).

Em outro sentido, o direito à busca da felicidade poderia ser conceituado como sendo a concretização de todos os direitos individuais e coletivos. A felicidade, pensada como exercício do próprio direito, seria o resultado natural da tutela dos demais direito. “Todo ser humano almeja ser feliz. Mas para isto e, antes de qualquer busca, ele precisa estar vivo, ter saúde, alimentar-se, ter onde morar, ter instrução/educação, ter trabalho (ser produtivo) e, ao envelhecer saber que colherá os frutos do trabalho” (HORITA; SIMÕES, 2014, pag. 5). O direito à felicidade só poderia ser concretizado se os demais direitos forem satisfeitos, como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à moradia, à educação, ao trabalho, entre outros.

Essas concepções a certa do direito à busca da felicidade incorrem em um equívoco conceitual. Em primeiro lugar, o direito é à busca da felicidade e não à própria felicidade. O termo ‘busca’ está na própria essência do direito tratado. Assim, como a busca é ato essencialmente do sujeito, o direito à busca da felicidade não pode ser simplesmente conceituado como direito à própria felicidade.    

Ademias, se o sujeito tem direito à felicidade, conclui-se, por simples raciocínio lógico, que a infelicidade seria um ilícito, ou seja, violação ao direito à felicidade. Se a infelicidade é um ilícito, poderia produzir suas consequências na ordem jurídicas, como indenização por danos ou até mesmo uma obrigação de fazer. Vê-se, pois, que essa definição do direito analisado apresenta certa incoerência.

Por definir o direito à busca da felicidade como direito à própria felicidade, haveria dificuldade em sustentar a própria existência desse direito. Assim afirma Erick Silva (2013, pag. 114): “Por esta inclusão constitucional a felicidade não seria propriamente um direito. O máximo que poderia se admitir é que a felicidade estaria inserida neste sentido de meta a ser alcançada (…)”. A felicidade, de per si, não poderia ser tutelada pelo direito: “É certo que as pessoas têm que ter oportunidade de minimizar os danos, as privações ou os sofrimentos graves que atuam negativamente no plano de suas vidas, mas nem todos os danos são reparáveis. A vida traz experiências negativas que o convívio social, a ciência e o direito não têm forças para afastar. (…) Portanto, se o Direito não pode assegurar a felicidade como prazer ou mesmo como ausência de sofrimento, poderá assegurar o livre desenvolvimento das potencialidades criativas do sujeito para que este possa se proteger do que lhe perturba e perseguir o que lhe traz prazer, satisfação e crescimento (MARTINS; MENEZES, 2013, pag. 484).

Entender o direito à busca da felicidade como direito à felicidade não parece correto. Embora muitos dos direitos sociais e individuais possam, em alguma medida, produzir condições geradoras de bem-estar, difícil, a partir disso, conceber o dever do Estado ou até mesmo da coletividade em garantir a felicidade dos indivíduos.

Analisando os julgamentos da Suprema Corte em que foi usado o direito à busca da felicidade como fundamento da decisão, tem-se um delinear do direito em questão. No julgamento da constitucionalidade de uso de células-tronco embrionárias em pesquisas, o Ministro Celso de Mello afirma que a liberação das pesquisas permitiria a milhões de pessoas “o exercício concreto de um direito básico e inalienável – o direito à busca da felicidade e o de viver com dignidade (…)” (BRASIL, 2008, pag. 209). Analisando a questão posta em julgamento, percebe que o direito à saúde e o direito à vida talvez pudesse ser suficiente para fundamentar a decisão tomada, mas é possível afirmar que o direito à busca da felicidade possibilitou alcançar dimensões existenciais para a causa. A palavra ‘esperança’ foi constante no julgamento, como se a Corte dissesse que ao menos a esperança deveria ser garantida aos acometidos pelas enfermidades que poderiam ser curadas com a ajuda das pesquisas. Observa-se nos fundamentos da decisão em relação ao direito à busca da felicidade um sentido existencial, não compreendido no direito à saúde ou, até mesmo, no direito à vida.

O direito à saúde pode ser compreendido em duas dimensões: o direito de não sofrer violação por parte de terceiro e o direito à prestação de serviços de prevenção de doenças, promoção, proteção e recuperação da saúde (MANICA, 2012, pag. 26). Ao permitir as pesquisas tutelava não só a saúde, mas a própria esperança de milhares de pessoas. Nas palavras da Ministra Cármen Lúcia: “A esperança é um direito natural (…)” (BRASIL, 2008, pag. 327). Ora, os animais podem ter saúde e vida, mas jamais terão esperança. É a esse elemento humano que estaria a proteger. Esse elemento traz importantes pistas do objeto de tutela do direito analisado.

No julgamento da ADPF 132, que tratou do reconhecimento da união homoafetiva, o direito à busca da felicidade construiu sentido parecido com o enunciado acima. Nas palavras do Ministro Ayres Britto, “(…) se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente” (BRASIL, 2011, pag. 31). O direito à busca da felicidade passaria a tutelar o projeto legítimo de felicidade do sujeito de orientação homossexual, permitindo-lhe realizar-se em plenitude.

Uma discussão central no julgamento da ADPF 132 era a definição da natureza da união homoafetiva, se união estável ou sociedade de fato, prevista no art. 981 do CC/02. O fundamento da autonomia privada não seria suficiente para concluir se tratar de união estável, pois por esse princípio poderia se concluir, de igual maneira, por se tratar de um caso de sociedade de fato. Foi o direito à busca da felicidade que possibilitou dar um salto no sentido de se considerar como união estável.

Entendendo a família, conforme sustentou Ayres Britto, como locus por excelência para a realização dos direitos fundamentais e o direito à busca da felicidade um direito fundamental, decorre que o reconhecimento da união homoafetiva como família mantém coerência com máxima efetivação desse direito. Por outro lado, está a se proteger o projeto de vida existencial, o que vai além do conceito de autonomia privada (BRASIL, 2011, pag. 39).

Merece consideração ainda o julgamento da SE 6467, homologação de sentença de divórcio, embora com pouco teor decisório. O divórcio é manifestação do direito de autodeterminação, na busca da plena realização de vida. Não poderia o Estado compelir alguém a manter-se unida a outra pessoa quando não mais há afeto.

Aparece ainda nos julgados da Suprema Corte brasileira o direito à busca da felicidade relacionado à obrigação de cunho prestacional, tratando da continuidade de benefício previdenciário, fundada em lei declarada inconstitucional. A Excelsa Corte manteve o benefício, tendo por base a boa-fé dos beneficiários, já que percebia os benefícios a um longo tempo. Por fim, fez referência ao direito à busca da felicidade.

3. A natureza do direito à busca da felicidade: uma análise a partir da teoria dos Status de Jellinek

Saul Leal defende que o direito à busca da felicidade estaria implícito no texto constitucional, decorrente da cláusula geral de promoção à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB). “A ideia de busca pela felicidade é anseio universal, independendo estar ele contido expressamente em documentos escritos. Trata-se de vontade que rompe barreiras geográficas, culturais ou econômicas” (2008, pag. 8). De fato, ao reconhecer o direito à busca da felicidade decorre da dignidade da pessoa humana estar-se-á conferindo maior tutela à esfera jurídica do sujeito.

Não obstante o reconhecimento de previsão implícita do direito à busca da felicidade, há no Senado Federal uma proposta de Emenda Constitucional, de autoria do Senador Cristovam Buarque, que prevê a inclusão do direito à busca felicidade entre os direitos sociais do art. 6º da CRFB (BRASIL, 2010), seguindo outros estados constitucionais.

O direito à busca da felicidade estaria inserido no ordenamento jurídico constitucional brasileiro como um direito fundamental. Diante disso, a investigação em torno da natureza desse direito fundamental a partir da proposta de Alexy contribuiria para elucidar o seu teor normativo, o que passa a fazer em seguida.

Conforme Alexy, Jellinek diferenciava quatro status dos direitos fundamentais: status passivo, status negativo, status positivo e status ativo. O status seria uma relação que qualifica o sujeito perante o Estado. Não seria um direito, mas uma situação que o sujeito ocupa ante a uma relação que se estabelece com o Estado (ALEXY, 2006, pag. 255).

O status passivo é a situação de sujeição do indivíduo perante o Estado. Ou seja, quando o sujeito é destinatário de um dever, uma obrigação. Há duas interpretações que se dão a esta situação de sujeição. A primeira se relaciona com um dever que recaia sobre o sujeito, o indivíduo titular de uma obrigação perante o Estado. Na segunda interpretação, o status passivo é composto pela generalidade das obrigações, ou seja, todos os deveres que são impostos ao sujeito pela ordem jurídica objetiva vigente (ALEXY, 1986, pag. 256-257).

Ao discorrer sobre o status negativo, Alexy levanta as problemáticas que envolvem a sua interpretação. O status negativo seria composto pelas liberdades jurídicas de fazer o que não estaria proibido ou englobaria os direitos comumente ditos de defesa? No primeiro sentido, o status negativo compreenderia a esfera individual de liberdade que tanto a ação quanto suas consequências seriam irrelevantes perante o Estado. Seria aquela ação que nem seria proibida nem obrigatória. Enquanto no segundo sentido o status negativo estaria compreendido pelas proibições de ações do Estado que perturbe o indivíduo em suas faculdades legalmente fundamentadas (ALEXY, 1986, pag. 258-260).

Assim discorre Alexy: “E pode-se dizer que todas as ações que ou lhe são obrigatórias ou proibidas pertencem ao seu espaço de obrigações. Da mesma forma que o espaço de liberdades é o conteúdo do status negativo, o espaço de obrigações é o conteúdo do status passivo. Toda negação de uma liberdade que faça parte do conteúdo do status negativo implica um dever ou uma proibição de um dever (ou uma proibição) que faça parte do conteúdo do status passivo implica uma liberdade equivalente, que faz parte do conteúdo do status negativo, desde que não seja estabelecida uma nova proibição (ou um novo dever) de conteúdo equivalente. Toda ampliação do espaço (jurídico) de obrigações é, por razões lógicas, uma redução do espaço (jurídico) de liberdade” (ALEXY, 1986, pag. 261).

O status positivo conferiria ao indivíduo a capacidade de exigir do Estado à utilização das instituições estatais, ou seja, prestações positivas. “(…) o Estado confere ao indivíduo o ‘status cívico’ quando (1) lhe garante ‘pretensões à sua atividade’ e (2) ‘cria meios jurídicos para a realização desse fim’” (ALEXY, 1986, pag. 264). Além do direito a algo, é preciso que o indivíduo tenha competência para exigir o cumprimento.

O status ativo confere ao indivíduo capacidade que esteja além de suas liberdades naturais, como por exemplo, o direito ao voto. Nas palavras de Alexy: “segundo Jellinek, o indivíduo é incorporado ao status ativo quando sua esfera ‘não é restringida por uma obrigação e, ao contrário, sua capacidade de agir juridicamente é ampliada’” (ALEXY, 1986, pag. 269).

Alexy faz algumas críticas à teoria de Jellinek sobre os status gerados pelos direitos, apresentando o que considera deficiências e obscuridades. Considera, entretanto, a teoria como exemplo formidável de construção teórica analítica (ALEXY, 1986).

Na teia dessas considerações, parece relevante analisar o direito à busca da felicidade em relação à teoria dos status. Embora o status não se identifique como direito, mas confere uma posição ao indivíduo perante o Estado, cada direito gera posições distintas dependendo do seu conteúdo. Nesse sentido, analisando os diferentes julgados da Suprema Corte brasileira, parece que o direito à busca da felicidade gerou posições distintas nas decisões. 

No julgamento da ADI 3510, foi reconhecido o dever do Estado de abster-se de interferir nas liberdades científicas e no pleno desenvolvimento do conhecimento humano, que na situação estava relacionada às pesquisas com células-tronco embrionárias, tutelando, em outra vertente, o direito das pessoas portadoras de algumas doenças à possibilidade de cura. Parece que nesse aspecto, o direito a continuidade das pesquisas gera verdadeiro status negativo, um dever de abstenção, embora possa admitir a coexistência de um direito de cujo prestacional em relação à promoção da saúde. Como, entretanto, a questão não dizia respeito ao dever do Estado em promover pesquisa, transcende de forma mais acentuada à defesa das liberdades. O direito à busca da felicidade, portanto, em alguma medida, teria conteúdo jurídico capaz de gerar uma obrigação de abstenção do Estado, ou seja, um não-fazer.

Analisando o julgamento da ADPF 132, que tratou do reconhecimento da união homoafetiva, numa análise superficial reconheceria um dever do Estado de se abster de possíveis interferências na vida privada, identificando como direito de defesa. Entretanto, havia dois entendimentos em relação à questão: as uniões homoafetivas seriam sociedades de fato ou constituíam uniões estáveis. Ora, qualquer que fosse a conclusão, o Estado não estaria interferindo na vida privada. Não se tratava ali de proibir ou permitir alguma conduta, uma vez que não estava em debate a proibição em ser homossexual ou manter relações homoafetivas. A questão era se o Estado iria conferir maior ou menor segurança jurídica àquela jurídica factual.

Se entendermos que a proteção jurídica pelo direito objetivo das relações humanas é uma prestação estatal, estaremos a admitir que o direito à busca da felicidade teria conferido status positivo. O indivíduo que mantém união estável teria um direito em face do Estado de lhe conferir segurança jurídica nessa relação. Se por outro lado, admitirmos que a segurança jurídica não seja uma prestação (algo), decorre que o direito teria conferido status negativo, gerando obrigação ao Estado de se abster de interferir na vida privada do sujeito.

O status negativo parece mais bem definido ao tratar do divórcio (SE 6467). O direito ao divórcio impõe ao Estado um dever de se abster de interferir na vontade dos cônjuges que decidem dissolver o matrimônio, ou seja, um direito do sujeito de ter do Estado uma conduta negativa, um verdadeiro não-fazer.

Em relação aos julgados que tratavam de benefício previdenciário concedido com base em lei declarada inconstitucional, há nítido surgimento de verdadeira posição ativo do sujeito em face do Estado. Foi concedido ao sujeito um direito a algo, a uma prestação em face do Estado, aproximando do que se entende por status positivo.

Sem grande rigor científico, podemos afirmar que o direito à busca da felicidade apareceu na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tanto com uma obrigação de abstenção quanto como um dever de cumprir uma prestação por parte do Estado. Ou seja, o direito à busca da felicidade pode conferir ao sujeito um direito a algo em face do Estado, vale dizer, uma conduta positiva, quanto um direito do sujeito de ter protegida a sua liberdade, uma conduta passiva do Estado.

O direito à busca da felicidade historicamente esteve ligado a um dever de abstenção do Estado, podemos citar a Declaração de Direito de Virgínia de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Desse modo, parece mais fácil perceber o direito analisado exigindo do Estado uma abstenção, como no caso do divórcio ou até mesmo no julgamento da união homoafetiva. O direito à busca da felicidade estaria a proteger um âmbito de liberdade íntima do sujeito, de conduzindo-se por si mesmo. Entretanto, não parece tão contundente, à primeira vista, esse direito exigindo do Estado uma conduta positiva, um dever de ação.

Em relação a esta questão, importante notar um projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional que pode caracterizar um exemplo de obrigação de fazer tendo como fundamento o direito à busca da felicidade. Trata-se do PL 5002 de 2003, que dispõe sobre o direito à identidade de gênero. O artigo oitavo do projeto de lei dispõe que toda pessoa maior de 18 anos poderá fazer intervenções cirúrgicas de transexualização, a fim de adequar seu corpo à sua identidade de gênero, sendo todo o tratamento custeado pelo Sistema Único de Saúde. Esse projeto de lei se encontra em fase inicial de tramitação, mas suscita reflexão em relação à questão.

Parece contundente que as pessoas que não se identificam com o próprio corpo tem direito de ter custeada pelo Estado a cirurgia de transexualização. Não poderia conceber que uma pessoa ficasse “aprisionada” em um corpo que lhe é completamente estranho. É inarredável que o fundamento mais importante para se chegar a esta conclusão é o direito à busca da felicidade. Ou seja, o direito em análise exigiria do Estado uma conduta ativa, vale dizer, o custeamento da cirurgia de mudança de sexo. Estaria, portanto, diante de um exemplo plausível em que o direito à busca da felicidade geraria uma posição ativa do sujeito em face do Estado (status ativo).

4. O Direito à busca da felicidade e a possibilidade de restrição

A ideia de restrição a direitos fundamentais torna-se particularmente importante em relação ao direito à busca da felicidade. Admitindo uma amplitude considerável ao direito em análise, poderia se concluir que geraria invasão em um espaço a ser protegido por outros direitos fundamentais.

Alexy conceitua restrições a direitos fundamentais: “são normas que restringem uma posição prima facie de direito fundamental” (ALEXY, 1986, pag. 281). A restrição seria em relação aos bens protegidos pelo direito fundamental ou o direito prima facie. Importante notar que os direitos fundamentais somente podem ser restringidos por normas de igual hierarquia, ou seja, por normas constitucionais ou em virtude delas. Poderão ser restrições diretamente constitucionais ou indiretamente constitucionais (ALEXY, 1986, pag. 286).

Conforme considerações de Alexy, as restrições aos direitos fundamentais não poderiam atingir o conteúdo essencial do direito. Haveria um núcleo inatingível não atingido pelas restrições: “da natureza principiológica das normas de direitos fundamentais decorriam não apenas a restrição e a restringibilidade dos diretos fundamentais em face de princípios colidentes, mas também que sua restringibilidade tem limites” (ALEXY, 1986, pag. 295-296).

O conceito de suporte fático é interessante no entendimento das restrições. Suporte fático seria as condições jurídicas para que uma norma produza suas consequências.“Para que a consequência jurídica definitiva (proteção definitiva) de um direito fundamental ocorra, o suporte fático tem que ser preenchido e a cláusula de restrição, não; para que ela não ocorra é necessário ou que o suporte fático não seja preenchido ou que a cláusula de restrição o seja” (ALEXY, 1986, pag. 308).

Importante ainda considerar que nem todas as normas que tenham por objeto a proteção abarcada pelos direitos fundamentais buscarão restringi-los. Para tanto, é preciso diferenciar as normas que restringem das que buscam configurar o direito fundamental. As normas de configuração buscam dar corpo (regula) ao direito, não criando propriamente uma restrição. Tais normas, portanto, não precisam ser justificadas constitucionalmente, o que não ocorre com as normas restritivas (ALEXY, 1986).

Portanto, não pairam dúvidas de que os direitos fundamentais podem sofrer restrições, desde que devidamente fundamentados constitucionalmente. O direito à busca da felicidade não escapa dessa regra, considerando, contudo, que o núcleo essencial do direito deve ser mantido. Não se considera em qualquer medida um direito absoluto, que deva ser garantido mesmo tendente a anular outros direitos. Se assim se considerar, não se poderia admitir qualquer direito, já que em alguma medida um direito invade espaço protegido por outro.

Conclusão

Pode-se concluir, após análise das discussões doutrinárias e da jurisprudência da Suprema Corte do Brasil, que o direito à busca da felicidade tem núcleo protetivo que o singulariza dos demais direito. Há um espaço de tutela desse direito que não coincide com o âmbito de proteção dos demais direitos.

Analisando o direito à busca da felicidade, em sua dimensão garantista, não há perfeita identificação com o direito à liberdade. O direito em questão protegeria a liberdade com certo “conteúdo”, que seria a liberdade do ser humano na busca da autorealização. O Estado estaria impedido de intervir na liberdade do sujeito que busca realizar-se como tal.

Essa diferença pode ser percebida, por exemplo, no julgamento da constitucionalidade da união estável homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal. No caso, a liberdade em seu sentido genuíno não levaria concluir pelo reconhecimento de forma necessária. Como analisado, a Corte não estava apreciando a licitude ou não da conduta de manter união estável homoafetiva. Se o tribunal enfrentasse essa questão, o direito à liberdade poderia tomar acento principal. Entretanto, a questão que foi travada estava em se considerar maior ou menor proteção jurídica àquele fato posto em julgamento. De tal modo, não estava em jogo a liberdade “vazia” em praticar ou não uma conduta, mas se esse fato merecia a adequada tutela jurídica.  

A conclusão da Excelsa Corte, nesses termos, está em perfeita consonância com o teor normativo que se pretende atribuir ao direito à busca da felicidade. A liberdade no direito analisado tem direção definida: a realização existencial do sujeito ou o alcance de um grau máximo de realização possível. Desse modo, no caso debatido na Suprema Corte, não haveria outra decisão possível, considerando o direito analisado.

Por outro lado, não há coincidência do direito à busca da felicidade com os demais direitos de cunho prestacional. Esse direito poderá exigir do Estado uma prestação que não encontraria amparo, por exemplo, no direito à saúde. Como referido no trabalho, basta imaginarmos a pretensão do sujeito em ter custeado pelo Estado uma cirurgia de transgenitalização, que, por qualquer motivo, não poderia ser resolvida no âmbito de proteção do direito à saúde. Nesse caso, parece bastante razoável entender que aquele que necessita de tal procedimento cirúrgico e não dispõe de recurso para custeá-lo, terá o direito de ter fornecido pelo Estado o procedimento. O direito que melhor fundamenta essa pretensão é, sem dúvida, o direito à busca da felicidade, como expressão genuína do lado existencial do ser humano. Não poderia alguém ser condenado a “morar” em um corpo que não é “seu”. Nesse caso, a garantia do direito são as condições materiais para a autorrealização.

De tal modo, o direito à busca da felicidade tanto poderá exigir do Estado uma abstenção, quanto um agir. A tutela do direito não seria um bem que se possa reduzir a um conceito límpido, mas seriam condições genéricas para a realização do sujeito, enquanto ser aberto à dimensão existencial.

Por tudo isso, não pode haver direito que mais intimamente esteja ligado à dignidade da pessoa humana que o direito à busca da felicidade. É inimaginável qualquer ser humano que não queira ser feliz e realizar-se. Embora o direito não proteja a felicidade em si, é inegável que ela seja a preocupação central da reflexão em torno desse direito. 

Será necessário, em todo caso, que as reflexões sobre esse direito sejam aprofundadas, robustecendo e dando maior clareza ao seu sentido normativo.

 

Referências
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Informações Sobre o Autor

João Ronaldo Ribeiro

Bacharel em Direito (PUC Minas), com graduação incompleta em Filosofia (ISTA), especialista em Direito Empresarial e em Direito Notarial e Registral (UCAM), pós-graduando em Direito Civil (PUC Minas).


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