O abandono legal dos loucos infratores

Resumo: O dever do Estado não se resume a uma mera resposta à sociedade de punição para aqueles que cometem crimes por terem um desequilíbrio mental. É, também, dever do Estado, garantir os direitos desses indivíduos, principalmente aquele garantido no artigo 5º da Constituição Federal, que é o direito à saúde. A interdisciplinaridade de saúde mental e direitos humanos interessa a sociedade, já que não se explica a dicotomia de indivíduo e sociedade, pois esse tema sobre a dignidade da pessoa, independentemente de ser paciente ou autor de delitos, plasma conteúdos de Ciências da Saúde, das Ciências Jurídicas e das Ciências Sociais. A medida de segurança a qual são submetidos os indivíduos que cometem crimes e possuem algum tipo de doença mental, é a internação nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), local onde eles devem receber o tratamento adequado, de acordo com diagnósticos individuais. Esse tratamento deve respeitar as leis nacionais e internacionais de direitos humanos e, para que isso aconteça, faz-se necessário uma fiscalização severa por parte da sociedade, denunciando quaisquer maus-tratos e condições precárias, que possam porventura acontecer. Contudo, essa fiscalização deve-se nortear pelos princípios de direito do ordenamento jurídico penal e dos direitos humanos, fazendo com que as leis sejam aplicadas humanamente e da forma correta, com a devida intensidade e proporcionalidade face ao delito cometido.

Palavras-chave: Estado. Direito. Crime. Doença mental.  

Abstract: The obligation of the state doesn't resume itself to a mere punition response of those who have committed crimes because of mentally illness to the society. The state shall guarantee the rights of these individuals, especially those from the 5th article of the Federal Constitution, which is the right of health. The interdisciplinarity of the mental health and the human rights interests the society, since cannot be explained the dichotomy of individual and society, because this theme about the human dignity, independently of being patient or author of the offenses, merge subjects from the Health, Legal and Social Sciences. The safety measure that offenders that have some kind of mental illness are submitted to is the hospitalization in the psychiatric treatment and custody hospitals (HCTP), where they should receive the correct treatment, according to their individual diagnostics. This treatment must respect the national and international laws of human rights and, in order of this, the society needs to be more severely overseeing, reporting any kind of bad treatment or precarious conditions that might happen. However, this oversight must be guided by the principles of penal laws and the human rights, causing the laws to be applied humanely and in the right way, with the correct intensity and proportionality facing the committed offense.

Keywords: State. Law. Offens. Mental illness.

Sumário: Introdução. 1 Evolução histórica dos antigos Manicômios Judiciais. 2 Políticas de saúde mental no Brasil. 3 Aplicação da reforma psiquiátrica ao louco infrator. 4 Jurisprudências. Conclusão. Referências.

Introdução

É cediço que pessoas com transtorno mental vêm continuamente sendo autoras de delitos, o que apavora a sociedade e desafia as autoridades. Esse assunto amplamente interdisciplinar deve ser estudado em um vértice sobre a discussão dos direitos humanos.

É tida como pessoa com transtorno mental aquela que possui uma perturbação grave na constituição caracterológica e nas tendências comportamentais do indivíduo, havendo uma anomalia do desenvolvimento psíquico. Estes indivíduos apresentam uma desarmonia de afetividade, do controle dos impulsos, das atitudes e das condutas, manifestando-se desarmonicamente no relacionamento interpessoal, ficando sujeitos, principalmente aqueles com características antissociais, a todas as espécies de crimes. (MORANA, STONES E ABDALA-FILHO, 2006, p. 74-79).

 Esses portadores de transtorno mental são inimputáveis, pois o crime é uma atividade antijurídica e esses portadores de síndromes mentais não possuem a intenção de causar o dano, inexistindo o sujeito da culpa. Nesse passo, os inimputáveis vão ser custodiados pelo Estado que antigamente os deixavam nos manicômios judiciários, onde lá perdiam seus direitos, culminando com a violação dos seus direitos humanos. Alguns exemplos dessa violação eram o tratamento inadequado, precárias condições sanitárias, tortura, maus-tratos, insalubridade, falta de acesso à Justiça e a ausência de mecanismos que preservassem o vínculo com os familiares.

No Brasil da atualidade, a medida de segurança para essas pessoas com transtorno mental é a internação compulsória nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), antigos manicômios judiciais. Os manicômios judiciais surgiram no Brasil a partir da segunda década do século XX, como modelo de instituição total, pois exercia um regime de internação de longo prazo e reforçava a exclusão e a limitação do indivíduo com o mundo exterior. Contudo, esse quadro começou a mudar precisamente a partir da reforma psiquiátrica, com a instituição da Lei nº 10.216/2001, onde deu lugar a um aspecto que busca medidas terapêuticas em liberdade, até quando estabilizar o quadro clínico.

Esses “loucos” infratores são internados para tratamento nos HCTPs por um prazo estipulado na sentença por um juiz criminal, uma vez que não justificaria que esses cidadãos respondessem por um crime que nem ao menos eles sabem que cometeram. Portanto, esses atos ilícitos praticados por pessoas com transtorno mental não devem ser tratados como uma forma de combate à criminalidade, pois não se tratam de pessoas conscientes que estão praticando um crime.

Nesse contexto, o presente Artigo busca verificar se o tratamento ao inimputável dado pelo Estado Democrático de Direito está de acordo com o estabelecido em lei, corroborando o descaso que se tem por parte da sociedade e das autoridades.

1 Evolução histórica dos antigos Manicômios Judiciais

O manicômio judicial surgiu após a crescente pressão da sociedade para que fosse recolhido os “alienados” em um lugar de isolamento, com o objetivo de tratá-los e castigá-los por não se adaptarem as regras sociais. Nesse contexto foi criado o Hospício Pedro II, inaugurado em 1852, na cidade do Rio de Janeiro, com o intuito de encaminhar as pessoas que eram consideradas “loucas”. No entanto, foi discutida a necessidade de se separar os loucos perigosos dos demais, pois esses indivíduos ameaçadores exigiam práticas violentas e repressiva de medicalização.

O diretor do Hospício Pedro II no ano de 1920 acreditava que os loucos criminosos não deveriam estar naquela instituição, e sim em uma prisão especial, onde fosse ao mesmo tempo prisão e manicômio. Assim, o surgimento do manicômio judiciário no Brasil vem caracterizado pelo binômio: hospital e prisão. Desse modo, passou a funcionar no País além de hospitais psiquiátricos, os espaços asilares, que recebiam para tratamento aqueles com transtorno mental que cometiam algum tipo de delito.

Iniciava-se, então, o entendimento da necessidade de se construir uma nova instituição para receber e tratar esse segmento populacional. Antes da construção desse novo espaço, aqueles que possuíam algum tipo de transtorno mental e cometiam crimes eram encaminhados às Casas de Correção ou aos Asilos, onde ficavam em alas específicas.

A edição do Decreto nº 1.132, de dezembro de 1903 trouxe a recomendação de que fossem criadas seções especiais para os “loucos” infratores nos manicômios, estabelecendo, assim, normas de internação desses indivíduos, conforme dispunha:

“Art. 10 é proibido manter alienados em cadeias públicas ou entre criminosos;

Art. 11 enquanto não possuírem os Estados manicômios criminais, os alienados delinquentes e os condenados alienados somente poderão permanecer em asilos públicos nos pavilhões que especialmente se lhes reservem”.

Logo em seguida, essas determinações foram reafirmadas no Decreto nº 5.148ª, de 10 de janeiro de 1927. Posteriormente a implementação de tal Decreto, foi instalado no Hospício Nacional de Alienados, uma enfermaria destinada a tratamento dos alienados infratores, denominada de Seção Lombroso.

O primeiro manicômio judiciário do Brasil e da América Latina surgiu na cidade do Rio de Janeiro, em 30 de maio de 1921. Vale ressaltar que, neste mesmo ano, foi promulgado o Decreto nº 14.831, de 25 de maio de 1921, que abonava o regulamento do manicômio judiciário:

“Art. 1º O Manicômio Judiciário é uma dependência da Assistência a Alienados no Distrito Federal, destinada a internação: I Dos condenados que achando-se recolhidos em prisões federais, apresentem sintomas de loucura; II Dos acusados que pela mesma razão devam ser submetidos a observação especial ou tratamento; III Dos delinquentes isentos de responsabilidades por motivo de afecção mental quando a critério do juiz assim o exija a segurança pública.”

Com o surgimento do manicômio judiciário, iniciou-se uma solução de interesse da sociedade ao apresentar-se como uma instituição prisional. Sustentando, então, a ideia de que ainda que o indivíduo fosse portador de algum transtorno mental, deveria pagar pelo delito cometido. O Decreto nº 20.155, de 29 de junho de 1931, instituía que os manicômios eram os “serviços de assistência a psicopatas”. Nesse passo, essa instituição apresentava, desde a sua criação, uma estrutura ambígua e contraditória, pois de um lado era vista como um estabelecimento de custódia e por outro lado era visto como uma instituição de tratamento.

Ao longo do século XX esse modelo de instituição foi criado em outras localidades do País, como em Barbacena, em Minas Gerais, no ano de 1929, o maior hospício do Brasil e o local onde aconteceu a maior barbárie que se teve notícia no Brasil, quando pessoas eram internadas sem terem sintomas de loucura ou insanidade e, como consequência, morreram mais de 60 mil pessoas, situação retratada no livro-reportagem “Holocausto Brasileiro” da jornalista Daniela Arbex.

Nesse novo modelo institucional, o manicômio judiciário ficaria restrito a pessoas que cometessem crimes e fossem portadoras de algum tipo de transtorno mental, passando a ser vinculada essa instituição à Secretaria da Justiça e não mais à Secretaria da Saúde, fazendo parte agora do sistema penitenciário.  

A partir da reforma do Código Penal de 1984, foi adotado o sistema vicariante, onde o fundamento da pena passa a ser tão-somente a culpabilidade, enquanto que a medida de segurança encontrava justificativa exclusivamente na periculosidade aliada à incapacidade penal do agente.

Nesse passo, a medida de segurança passou a ser aplicada apenas aos inimputáveis, tendo tal instituto a natureza preventiva e não a punitiva. Com tal Reforma, portanto, as medidas de segurança que visavam a garantir a proteção, tanto do indivíduo com transtorno mental quanto da sociedade, são alteradas no artigo 96 do Código Penal e passam a significar obrigatório tratamento psiquiátrico, seja em internação em HCTP ou, à falta de outro estabelecimento adequado, a sujeição ao tratamento ambulatorial.

2 Políticas de saúde mental no Brasil

No decorrer do século XX, a questão social passa a se tornar uma preocupação central do Estado, requerendo então, uma Política de Saúde Mental. No século XIX, cabia à psiquiatria recolher e excluir o indivíduo, tendo no século seguinte, além da remoção e exclusão, uma indicação clínica para o tratamento moral. A partir de então foram buscados esforços para alterar a realidade asilar, através da construção de outros modelos capazes de promover um maior nível de interação e de democracia nas relações existentes entre os profissionais e os internos da instituição psiquiátrica.

O Movimento da Reforma Psiquiátrica marcava um novo momento, ao longo da década de 1990, sugerindo a superação do modelo hegemônico de caráter excludente e discriminatório. Diversos segmentos das áreas de saúde pública e dos direitos humanos concentraram esforços no sentido de construir uma estrutura de uma rede de serviços de atenção diária em saúde mental, correspondente ao modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), cuja intenção era a integração dos usuários com suas famílias e com a comunidade.

Uma recente perspectiva no ordenamento jurídico no Brasil em relação ao indivíduo com transtorno mental, ensejou na edição da Lei nº 10.216, em 6 de abril de 2001, conhecida com a Lei da Reforma Psiquiátrica. Essa nova Lei trouxe uma nova compreensão sobre a saúde mental, ao proibir o tratamento em regime asilar e introduzir como finalidade permanente o cuidado e a reinserção social do paciente.

O importante desta Lei é o papel das famílias nas intervenções terapêuticas e na remodelação do sistema, pugnando pelo fim dos manicômios e oportunizando o tratamento distante dos modelos de reclusão. Nesse sentido, a família ganha novo papel, pois incumbe a ela o papel de ministrar a assistência integral ao parente com transtorno mental, desde o aspecto emocional, social, psicológico ao medicamentoso, recorrendo aos postos de atendimento nos casos em que os familiares com transtorno apresentarem alguma crise atípica aos contornos da própria patologia.

Entretanto, esse nova forma de tratamento não atingiu aos portadores de transtorno mental que cometem crimes, embora a lei seja interpretada em sentido amplo, foi esquecido daqueles que padecem de transtorno mental e delinquem.

Em estudo feito e divulgado na Série Pensando o Direito: Medidas de Seguranças foram analisados 228 dossiês dos HCTPS dos Estados de Minas Gerais e da Bahia, nos meses de julho, agosto e setembro de 2010, e foi verificado que apenas 11 deles faziam referência explícita à Lei como diretriz capaz de orientar a aplicação da respectiva medida de internação. Em apenas 2 casos, dos 11 encontrados, era o juiz que mencionava a Lei da Reforma Psiquiátrica, e nos outros 9 casos, a Lei nº 10.216 aparece por menções da Defensoria Pública em argumentações geralmente para defender a inclusão do paciente em medida de segurança nos serviços substitutivos de assistência em saúde à população em sofrimento mental. Dos dossiês que fazem menção à Lei nº 10.216, apenas 2 deles são de medidas de segurança de longa internação, como visto a seguir:

16407a

Foram analisados também os tipos de crimes que fazem a referência à Lei da Reforma Psiquiátrica, obtendo o seguinte resultado:

16407b

Um grande desafio para efetivação da lei antimanicomial, além de instituir mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios, é estender seus princípios para a aplicação das medidas de segurança e inclusive fundamentar nas decisões de internação.

3 Aplicação da reforma psiquiátrica ao louco infrator

A Lei da Reforma Psiquiátrica, em vigor desde 2001, constituiu novo padrão no que tange aos direitos das pessoas portadoras de doença mental, difundiu nova visão sobre a loucura e substituiu a separação e exclusão pela desinstitucionalização e humanização do tratamento de portadores de transtorno mental.

Ocorre que a política de saúde mental instituída pela Lei nº 10.216/2001 não convive, no que se refere ao doente mental infrator, com os dogmas postos no Código Penal e na Lei de Execução Penal. A lei penal, em termos de tratamento de saúde mental, porque superada ante a evolução das ciências médica, psicológica e da farmacologia nas últimas décadas, bem como incompatível com a (posterior) Lei de Reforma Psiquiátrica, não pode mais ter aplicabilidade.

Por certo, hoje é impensável seguir a determinação anacrônica contida no Código Penal, para que haja internação em razão da prática de crimes apenados com reclusão e tratamento ambulatorial, a critério judicial, quando o crime cometido for apenado com detenção. Não importa a identificação do transtorno mental, nem a necessidade individual de tratamento, nos termos da lei penal, o crime praticado é que determina o tipo de tratamento que será imposto.

No Código Penal, a periculosidade do inimputável é presumida – ela simplesmente existe; é uma espécie de cânone inflexível no nosso direito penal. Se o portador de transtorno mental pratica crime apenado com reclusão, tem periculosidade e deve ser internado em manicômio judiciário pelo prazo mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos! Para a lei penal, a periculosidade é presunção de que todo portador de transtorno mental voltará a delinquir, causará risco à sociedade. É como se não devessem ser tratados como portadores de transtorno mental ou como se fossem, por opção, portadores de defeitos de ordem moral. Ora, o Código Penal e a Lei de Execução Penal foram totalmente ultrapassados no que tange ao tratamento do portador de transtorno mental e, em seu lugar, deve se aplicar a Lei nº 10.216/2001 que, diga-se, abrange o louco infrator ao tratar da internação compulsória – determinada pela Justiça. E mais, a Lei nº 10.216/2001 estabelece que a internação, em qualquer de suas modalidades, “só será autorizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize seus motivos”; “só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” e o tratamento terá a finalidade permanente de inserir o paciente em seu meio – ou seja, sua duração será a mínima possível (arts. 6º e 4º).

Portanto, não há mais que se falar em internação atrelada às disposições do Código Penal. Em termos penais, é de se afirmar que o tratamento compulsório, através da internação, só se sustenta eticamente se for absolutamente indispensável, e que não é mais admissível que o juiz estabeleça o tratamento indicado ao paciente. Ao juiz compete, constatada a doença mental, oferecer o tratamento adequado de acordo com a indicação de equipe multidisciplinar. É esta equipe que dirá qual o tratamento indicado para cada pessoa, individualmente considerada, detentora de dignidade, cidadania e titularidade de direitos.

A verdade é que o controle e tratamento do doente mental que comete crime não pode estar a cargo do direito penal, já que se trata de questão atinente à saúde pública. Como consequência, os portadores de transtorno mental que praticaram crimes deverão ser tratados pelo sistema de saúde, preferencialmente em liberdade, vedada a permanência no sistema prisional. Em caso de prisão em flagrante ou cautelar, constatado o transtorno mental, o preso deverá ser imediatamente transferido, de acordo com parecer de equipe de saúde multiprofissional, para equipamento da rede de saúde adequado ao seu caso, para tratamento.

A internação compulsória só é eticamente admissível se for absolutamente indispensável e tiver por fim assegurar a saúde mental do paciente. A internação compulsória não poderá ultrapassar o tempo estritamente necessário para estabilização do quadro agudo, nos termos da indicação da equipe de saúde interdisciplinar; cessado este período, se necessário para manutenção de sua saúde mental, o paciente deve ser encaminhado para tratamento em liberdade, em equipamento da rede de saúde, de acordo com seu quadro e projeto terapêutico individualizado, elaborado por equipe de saúde. Nesse sentido devemos caminhar até que chegue o dia em que não hajam mais manicômios judiciários no País e que todos os pacientes com transtorno mental sejam tratados pela saúde, nos termos da Lei nº 10.216/2001, que diz ser direito do doente mental ter acesso ao melhor tratamento oferecido pelo sistema de saúde e de ser tratado, preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental.

Deve-se lembrar, por fim, que a Lei nº 10.216/2001 veda a internação em instituições de características asilares e, nesse ponto, enterra definitivamente o malfadado modelo “jurídico-terapêutico-punitivo-prisional” dos HCTPs.

4 Jurisprudências

Para aqueles portadores de transtorno mental e que praticam algum delito, o Superior Tribunal de Justiça soma ampla jurisprudência acerca do assunto. Nas hipóteses em que houver dúvidas sobre a sanidade do indivíduo o STJ entende que não caracteriza cerceamento de defesa o indeferimento de exame de sanidade mental se não há dúvida sobre a integridade da saúde do paciente, não bastando simples requerimento da parte para que o procedimento seja instaurado. Entende a jurisprudência, que não basta a mera alegação de alguns parentes da insanidade do indivíduo para que seja solicitado o exame comprobatório, é necessário que essa solicitação seja acompanhada de provas (HC 107.102).

Para o STJ é necessário haver uma relação entre o ato criminoso e a doença para que o indivíduo com uma doença mental, como a esquizofrenia, por exemplo, garanta a inimputabilidade. Segundo jurisprudências, o laudo médico é suporte essencial para o juiz proferir a decisão. A doutrina penal aponta três critérios que fixam a responsabilidade penal: o biológico, o psicológico e o biopsicológico. Na análise de inimputabilidade por doença mental, segundo decisão do STJ, prevalece o último. Não basta que o réu padeça de alguma enfermidade somente (critério biológico), é preciso ainda que exista prova de que o transtorno realmente afetou a capacidade de compreensão do caráter ilícito do fato (critério psicológico) (HC 55.320 e HC 33.401).

Pelo critério biológico, considera-se que a responsabilidade estará sempre diminuída caso o indivíduo tenha prejuízo na saúde mental, não importando o nexo causal. O psicológico, por sua vez, não perquire se o paciente tem uma doença, apenas quer saber se, no momento do ilícito, o indivíduo se encontrava com a capacidade de entendimento e autodeterminação reduzida. E o critério biopsicológico é a soma dos dois critérios.

A Classificação Internacional das Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), reúne quase uma centena de doenças e transtornos mentais. O Código Penal, entretanto, divide os distúrbios psíquicos em quatro categorias: a doença mental, perturbação da saúde mental, desenvolvimento mental retardado e desenvolvimento mental incompleto.

A psiquiatra forense, Maria Regina Rocha Matos, em consideração sobre o tema, adverte que, na prática, é quase impossível sintetizar as doenças da mente numa lista nominal, e o próprio Código não o faz. A Justiça deve decidir caso a caso o destino de cada paciente. A inimputabilidade do doente mental está prevista no artigo 26 do Código Penal, que determina a absolvição do condenado quando da constatação da doença, o que, segundo o STJ, deve ser feito de forma sumária, com aplicação da medida de segurança (HC 42.314). Essa deve ser fixada por sentença, por prazo indeterminado, devendo perdurar até a constatação da cessação da periculosidade por perícia.

Eduardo Oliveira afirma que, às vezes, a medida de segurança determinada em juízo pode ser pior que a pena. Se o réu é condenado criminalmente, pode ser preso por, no máximo, 30 anos, além de poder conseguir a progressão de regime e redução da pena. O doente mental precisa de um laudo de cessação de periculosidade, que nem sempre o Estado está aparelhado para fornecer.

Nos últimos anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem promovendo mutirões para avaliar o cumprimento de normas relativas à execução de medidas de segurança, aplicadas a pessoas portadoras de doença mental. Em 2012, em três Estados brasileiros (Bahia, Rio de Janeiro e Pará), foram encontrados 260 internos vivendo em hospitais de custódia, sem amparo adequado e em segregação permanente, por terem perdido o vínculo familiar ou por não haver uma rede de assistência para acompanhá-los. O doente mental, em razão de delito, pode cumprir medida de segurança ou ser submetido a tratamento ambulatorial. A medida de segurança prevista no Código Penal é diferente da prevista na Lei de Execução Penal (LEP). A primeira, de acordo com o Ministro do STJ, Gilson Dipp, é aplicada ao inimputável no processo de conhecimento e tem prazo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada a cessação da periculosidade.

A medida de segurança, por outro lado, não pode ser aplicada de forma simultânea à pena privativa de liberdade. Mas, a medida de segurança prevista pela LEP, pode ser aplicada quando, no curso da execução da pena privativa de liberdade, sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental, oportunidade na qual a pena é substituída pela medida de segurança, que deve persistir pelo período de cumprimento da pena imposta na sentença penal condenatória. Conforme o STJ, a medida de segurança substitutiva pode ter no máximo a mesma duração da pena privativa de liberdade determinada (HC 55.044). O tratamento ambulatorial é previsto para aqueles que cometem delitos puníveis com detenção.

Recente posicionamento do STJ assinala que o artigo 97, parágrafo 1º, do Código Penal deve ser interpretado conforme os princípios da isonomia e da razoabilidade. Assim, o tempo de cumprimento da medida de segurança, na modalidade internação ou tratamento ambulatorial, deve ser limitado à pena máxima abstratamente cominada ao delito ou ao limite de 30 anos estabelecido no artigo 75 do Código Penal, caso o máximo da pena seja superior a esse período.

A decisão levou em conta que o Supremo Tribunal Federal, ao examinar a matéria, manifestou-se no sentido de que a medida de segurança deve obedecer à garantia constitucional que veda as penas de caráter perpétuo, nos termos do artigo 5.º, inciso XLVII, alínea “b”, da Constituição Federal, aplicando, por analogia, o limite temporal de 30 anos previsto no artigo 75 do C P (REsp 964.247).

Eduardo Oliveira informa que, nem todas as doenças mentais são irreversíveis. E o paciente, quando tratado, pode não agir necessariamente no sentido do crime. “O problema é que, para tratar o indivíduo, é preciso ter remédio, médico, psicólogo, estabelecimento adequado e, principalmente, suporte social e familiar”, diz ele – o que nem sempre é possível. A sociedade e a família, geralmente, se afastam do doente criminoso, dificultando sua recuperação.

Para o STJ, se a doença ocorrer durante a execução da pena privativa de liberdade, a medida de segurança faz o papel de internação provisória e se computa o tempo. O artigo 152 do Código de Processo Penal (CPP) dispõe que o processo deve ser suspenso quando a doença sobrevém à infração. O Tribunal suspendeu o júri de um portador de doença mental em razão de doença superveniente ao crime, e de acordo com o relator, Ministro Nilson Naves, “de nada valerá uma pena ou medida que não se adeque à realidade mental do paciente” (HC 41.808).

Segundo o STJ, a medida de segurança não é castigo, e é balizada por critérios terapêuticos. Não se confunde com medida socioeducativa. Em caso em que um menor foi internado na FEBEM de São Paulo, o STJ considerou que a medida apropriada ao adolescente infrator e portador de distúrbio mental não é socioeducativa, mas “protetiva” (HC 45.564).

O juiz de execução penal, Ademar Vasconcelos, em programa na TV Justiça apresentado no dia 19 de janeiro deste ano, apontou que o caso do menor infrator é grave porque a lei não exige o diagnóstico quando do cumprimento do processo socioeducativo, o que compromete sua recuperação e a dos que estão a sua volta. “Sem medo de errar, 30% dos infratores adolescentes têm transtornos não diagnosticados”, disse ele. A jurisprudência é no sentido de que a manutenção de inimputável em prisão comum é constrangimento ilegal, mesmo quando da falta de vaga em hospital psiquiátrico. Em caso específico, no entanto, a Sexta Turma permitiu que um acusado de cometer crime ficasse em prisão comum, até que surgisse a vaga em estabelecimento apropriado. O indivíduo era acusado de cometer atos libidinosos com criança de cinco anos.

Para a Sexta Turma, na ausência de vaga, o juízo da execução teria a faculdade de substituir a internação por tratamento ambulatorial (RHC 22.604), medida geralmente aplicada para quem comete infração sujeita a reclusão. Os procedimentos relativos à execução de medidas de segurança, assim como as diretrizes que devem ser adotadas em relação aos pacientes judiciários, estão previstos na Resolução nº 113 e na Recomendação 35 do CNJ.

O Código Penal prevê situações de semi-imputabilidade para aquele que, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto, não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. O parágrafo único do artigo 26 prevê redução da pena de um a dois terços para os infratores. O STJ considera que a diminuição da pena prevista nesse parágrafo é obrigatória (REsp 10.476). Um réu foi condenado a 19 anos e seis meses de reclusão pelo crime de homicídio, e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) havia decidido que era faculdade do juiz a diminuição da pena. O STJ fixou a tese de que a redução da pena é obrigatória e não uma mera faculdade do juiz.

Ao contrário do que acontece com o inimputável, que obrigatoriamente deve ser absolvido, conforme a jurisprudência, o semi-imputável pratica uma conduta típica e ilícita (HC 135.604). Eduardo Oliveira criticou o fato de não haver no País integração entre o hospital de custódia e o sistema público de saúde, que favoreça melhor amparo para o paciente e suporte para o magistrado. “O paciente recebe alta médica no hospital de custódia e não se sabe o que usou, como foi o tratamento, chegando ao sistema público no zero novamente”, afirmou ele. E um bom diagnóstico, para os doentes mentais, é essencial, sob o risco de se colocar um doente mental em presídio comum ou um semi-imputável em manicômio judiciário.

Conclusão

Existe um conjunto de cidadãos neste País que sequer costuma-se notar que existe, até porque não tem organização mínima para questionar seja lá o que for, e também não há quem fale por eles. São os portadores de transtornos mentais que praticaram crimes e estão custodiados pelo Estado no sistema prisional. Muitos são pobres, grande parte, miseráveis.

Essas pessoas sem representação encontram-se em manicômios judiciários, que, embora sejam denominados em lei como Hospital de Custódia e Tratamento Penitenciário (HCTP), são verdadeiras prisões e, de hospital e local de tratamento, nada têm. Com esse fato vexatório, o País convive há décadas. A inexistência de conhecimento e de interesse em dar encaminhamento ao assunto, entre outras razões, pode ser atribuída ao fato de que os titulares desse direito não têm voz, nem representação. Como convém, ninguém lembra que eles existem.

Essa classe invisível ainda não foi alcançada pela reforma psiquiátrica e pela política de humanização do tratamento do portador de transtorno mental. Nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico vige a institucionalização longa como regra, apesar das políticas públicas adotadas em todo o país visarem a desinstitucionalização dos doentes mentais.

Os loucos custodiados pelo Estado em razão da prática de crimes são seres submetidos a um mundo com símbolos e normas próprias, que devem descobrir e compreender, e aos quais, em que pese o direito ao tratamento adequado e necessário, não ser respeitado, devem se submeter, de preferência sem argumentar, sem que ninguém lhes explique a situação irreal pela qual passavam, ainda que seja tão-somente para conseguirem continuar vivos. Como se, por serem loucos, não tivessem qualquer direito.

Sabido é que a coletividade necessita marginalizar para manter escondidas suas próprias aberrações e, em se tratando de enfermos mentais que praticaram crimes, isso é notório: são os esquecidos dos esquecidos, os excluídos dos excluídos, afinal de contas são criminosos, pobres e loucos, os mais execráveis e miseráveis, os que mais devem permanecer escondidos do mundo.

É necessário ter audácia para garantir a efetivação dos direitos e Justiça, ainda que em desfavor ao desejo da maioria, para assegurar o respeito à dignidade de todos os cidadãos, especialmente de minorias de qualquer forma marginalizadas. De cidadãos que sequer sabem que fazem parte desta categoria de cidadãos, que não conseguem distinguir justiça de injustiça e são as maiores vítimas da transgressão do Poder (pela ignorância, exclusão e abandono).

 

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Informações Sobre o Autor

Jessica Tinel Gonzaga de Jesus

Bacharel em direito


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