Os princípios da bioética

Resumo: a proposta principal do presente artigo é fazer uma análise introdutória da Bioética, como veículo transdisciplinar de estudo entre Ciências Biológicas, Ciências da Saúde, Filosofia (Ética) e Direito (Biodireito) que investiga as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana, animal e ambiental, com esse ponto de partida, pretende-se abordar os princípios referidos pela doutrina especializada como mais importantes, quais sejam: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. A autonomia pode ser entendido como o poder de tomada de decisão no cuidado da saúde, é a atuação livre de interferências dos outros, além da livre de limitações pessoais que obstam a escolha expressiva da intenção. Já a Não Maleficência determina a obrigação de não infligir danos a quem quer que seja de maneira intencional. A beneficência decorre naturalmente do princípio da não-maleficência, refere-se à ação a ser feita. Ela comporta dois fatores: não fazer o mal ao próximo ou, melhor, positivamente, fazer-lhe o bem. Justiça, em termos de bioética, refere-se à igualdade de tratamento e à justa distribuição das verbas do Estado para a saúde, a pesquisa, e a prevenção, para todos aqueles que fazem parte da sociedade. Visa-se a formação de uma visão ampla sobre o tema proposto para análise.

Palavras chave: Bioética; biodireito; princípios;

Abstract: The most important point of this article is to make an introductory analysis of Bioethics, bioethics can be understood as a transdisciplinary study vehicle between Biological Sciences, Health Sciences, Philosophy (Ethics) and Law (Biology) that investigates the necessary conditions for an administration Responsible for human, animal and environmental life,in this way, it is intended to address the principles referred to by the specialized doctrine as more important, namely: autonomy, not maleficence, beneficence and justice. Autonomy can be understood as the power of decision-making in health care, it is the interference-free performance of others, as well as free from personal limitations that hinder the expressive choice of intention. Non-Maleficence, on the other hand, determines the obligation not to inflict harm on anyone in an intentional way. Beneficence naturally follows from the principle of non-maleficence, it refers to the action to be taken. It involves two factors: do not do evil to others or, better, positively, do you good. Justice, in terms of bioethics, refers to equal treatment and fair distribution of state funding for health, research, and prevention for all those who are part of society. Concluding, the objective is to get a broad view on the topic proposed for analysis.Keywords: Bioethics; “Biodireito”; principles;

Sumário: 1. Introdução: a importância dos princípios. 2. A bioética: nova palavra em novos contextos buscando novas respostas. 3. A abordagem da bioética segundo o principialismo. 4. Leque de princípios e os principais princípios. 4.1 Autonomia. 4.2 Não maleficência. 4.3 Beneficência. 4.4 Justiça. 5. Conclusão. Referencias.

1. Introdução: A importância dos princípios

Quando se pretende estudar determinado assunto é indispensável que se proceda à análise dos pontos básicos, introdutórios do conhecimento pretendido. Os princípios servem para fazer conhecer os pontos mais importantes sobre qualquer assunto que se busque aprofundar. No campo acadêmico, introdutoriamente são evidenciados os elementos indispensáveis para compreensão de determinado conjunto de ideias através da análise dos princípios. Na visão de Streck, os princípios desnudam a capa se sentido imposta pela regra, pelo enunciado, que pretende impor um universo significativo autossuficiente.

Em verdade, não há uma lista conclusiva dos princípios de determinada matéria, ao contrário, os estudiosos, os principais autores, elencam de forma livre os princípios que consideram importantes.

Para que se tenha uma visão ampla e inicial satisfatória acerca da bioética, ou de qualquer outro campo científico, se faz indispensável à análise dos seus princípios. No campo da Bioética os princípios citados pelos diversos autores servem para fornecer o aparato ideológico necessário para compreensão dos parâmetros éticos buscados nesta ciência.

Para que seja possível adentrar no campo dos princípios, no presente trabalho será feita uma retomada histórica do desenvolvimento da bioética como ciência. Em seguida, serão elencados os diversos princípios atribuídos a este campo científico, para enfim ser analisado o documento que reuniu os princípios considerados principais em termos de bioética.

2. A BIOÉTICA: NOVA PALAVRA EM NOVOS CONTEXTOS BUSCANDO NOVAS RESPOSTAS

Não se trata do objetivo principal deste artigo analisar a história e surgimento da bioética. No entanto, por ser relativamente novo o seu estudo, especialmente dentro do âmbito jurídico, é indispensável a alocação ao leitor sobre a importância do tema tratado. Assim, objetiva-se contextualizar a premissa da disciplina multifacetária da bioética para somente então, analisar-se a questão principiológica que o rege. Todo um contexto histórico pode colaborar em tal compreensão.

A partir dos anos 70, surge uma nova palavra utilizada no mundo da saúde: bioética. Com várias finalidades, o termo foi aceito, mesmo com contestações, porque o mundo ansiosamente esperava por ele. Havia uma preocupação comum, já que, o surgimento de novos poderes com o desenvolvimento biomédico, deixou as pessoas desconcertadas. Havia uma consciência generalizada dos poderes do homem e da dificuldade em dominá-los. Surge, portanto, um novo campo de estudo, sobre vida e morte, saúde e doença, qualidade de vida e sofrimento, entre outras questões, exigindo nova abordagem sobre os temas, com um novo método, especialmente voltado à interdisciplinaridade. Todos estavam ansiosos por novas práticas, nova forma de praticar a ação e de se tomar a decisão, não usando a teoria e reflexão universitária. Por tudo isso, a bioética é um movimento sociocultural, já que não pode ser descrita de forma abstrata e nem reduzida a um simples saber.

Por não ser uma “disciplina estruturada”, quanto ao seu surgimento e desenvolvimento, tudo parece acontecer ao mesmo tempo, o que dificulta a sistematização de seu estudo. Não há como determinar um acontecimento fundador único da bioética.

No que concerte à palavra bioética, a paternidade é invocada pelo médico americano Van Rensselaer Potter, através de um artigo seu, publicado em 1970: Bioethics, the Science of Survival. A ideia do autor era a criação de uma nova ciência, de sobrevivência, com a aliança do saber biológico e os valores humanos. Haveria a superação da distinção da cultura científica e da cultura clássica (as humanidades), o que geraria um vasto campo de aplicação, como um empreendimento interdisciplinar. Porém, a amplitude dessa visão foi limitada, por muitos autores e praticantes, às questões atinentes às ciências biológicas e sua aplicação na medicina. André Hellegers foi, então, quem primeiro utilizou a bioética no sentido mais estrito de sua aplicação, como o é atualmente. A bioética é, assim, lançada no campo de estudo universitário e como movimento social. Ainda que o legado de Potter acabe se restringindo, praticamente, à criação do termo “bioética”, “sua luta por uma abrangência mais globalizante foi importante e teve a sua repercussão no sentido de não reduzir a Bioética ao enfoque médico”.

Se o surgimento da palavra caracterizava um anseio da sociedade, razões não faltavam para isso. O contexto era de uma classe média que crescia e propagava uma nova mentalidade: individualismo, utilitarismo e gosto pelo consumo. Paralelamente, havia o desencantamento do mundo e da história em relação aos mitos, religiões e ideologias, desencadeando uma mentalidade racional e prático-prática. Surgia, ainda, conflitos entre grupos em razão da mutação das relações sociais devida ao feminismo, imigração e aumento da população de terceira idade, além da evidente fragmentação das esferas da vida e da cultura – direito, moral, religião, política, sistema judiciário, família, escola – e da especificação das ocupações e profissões, gerando um universo fracionado e pouco coerente. Concomitantemente a tudo isso, havia o crescimento econômico do pós-guerra, gerando otimismo na população e crença nos valores do desenvolvimento tecnocientífico.

Essa era a conjuntura observada quando do surgimento da bioética. Outros fatores, externos e internos, de alguma forma, demonstraram, também, a importância de sua emergência. A própria constituição da bioética como um saber autônomo é bastante recente e o seu processo de surgimento esteve ligado a certos fatores históricos e socioculturais que acabaram determinando suas características, enfoque e metodologia.

Em relação aos fatores externos, merecem destaque o desenvolvimento tecnocientífico, a manifestação dos direitos individuais, a modificação da relação médico paciente e o pluralismo social.

Depois da segunda guerra, os orçamentos de pesquisa aumentaram constantemente. As descobertas eram aplicadas de forma rápida às intervenções sobre os seres humanos, permitindo, assim, salvar, melhorar, prolongar e manter a vida de uma forma jamais vista anteriormente. Mas tais aplicações levantavam controvérsias entre o público e até mesmo na própria comunidade científica. A demanda era muito grande em comparação com a estrutura e profissionais disponibilizados. Surgem, assim, as questões: quem deve viver? Quem deve morrer? Quem decide?

Logo mais adiante, surgem os transplantes e outra questão é suscitada: quando ocorre, de fato, a morte da pessoa? Sobre o uso de respiração artificial, no caso de transplantes ou não, qual o limite ético à retirada do uso do respirador?

A engenharia genética, naquele momento, dando os seus primeiros sinais de utilização, colocou outras questões ao debate, especialmente em relação aos riscos das manipulações genéticas e os meios para controlá-los. Em 1975 foi realizada uma grande conferência internacional, em Asilomar, nos Estados Unidos e, após ampla discussão, tal encontro encerrou-se com a decisão de instauração de normas de segurança, que inspiraram, posteriormente, vários organismos e governos.

Na França, a partir dos anos 70, ganha-se destaque o debate sobre tecnologias de reprodução. Em meados dos anos 80, surge a amniocentese, um teste que visa à detecção de anomalias do feto durante os primeiros meses de gravidez, aumentando o debate sobre o aborto, já surgido anteriormente, mas com menor fonte tecnocientífica.

Com todos esses eventos, questões que pertenciam a zonas obscuras da ética médica e eram decididas apenas no senso de responsabilidade dos médicos, foram levantadas e colocadas em debate.

Outras questões, mais novas, já surgiram gerando, também questionamentos éticos: embriões humanos podem ser congelados? Pode-se intervir nos genes de um embrião? É possível transformar o ser humano? Em suma: com o avanço tecnocientífico visto a partir da década de 70, “não há mais a convicção de que a ciência é sempre boa e de que as suas descobertas devam necessariamente ser aplicadas”.

Mas não foi só esse desenvolvimento nas pesquisas que clamavam por um novo comportamento ético no que concerne à vida. Em meados de 1960, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, a proteção da liberdade e dignidade do indivíduo já era destacada, em razão da edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Havia uma conscientização dos direitos e, no que se refere à experimentação humana, os “cobaias”, a maior parte advinda de grupos minoritários – como negros, pobres, pessoas com deficiências mentais e presos – tinham noção da garantia de suas dignidades. Aliado a isso, os consumidores, sabedores de seus direitos, reivindicam o direito à saúde de forma efetiva e ampla. O paternalismo médico tradicional sofre duras críticas e os pacientes reivindicam o direito de participar da tomada de decisão referente à sua saúde e ao tratamento necessário. Ganha ênfase a autonomia da pessoa, pelo direito da autodeterminação.

Com isso, há uma modificação na relação médico-paciente, especialmente porque deixa de existir o médico familiar. O número de hospitais cresce rapidamente, concentrando todos os profissionais da saúde em um único lugar, com equipamentos necessários aos exames que precisavam ser feitos, já que os laboratórios ganham destaque no conhecimento científico. Unia-se economia e praticidade com o atendimento no hospital. Foram desenvolvidas as especializações e o médico não se concentrava mais no conjunto do corpo, mas apenas na parte de sua especialização. De familiar e pessoal, a atuação do médico torna-se organizacional e impessoal, trazendo maior distância e menor confiança do paciente em relação aos médicos. Assim, surge a vontade de não deixar, mais, somente aos médicos a decisão referente ao paciente. Aliás, a decisão envolve não somente médico e paciente, mas outros atores, como advogados, enfermeiros, juízes, filósofos, parentes, religiosos, caracterizando a multidisciplinaridade da bioética.

Outra mudança social inicia-se nos anos 60. Há uma consciência do pluralismo moral existente no mundo e uma contestação das autoridades, em nome da autonomia individual ou grupo desfavorecido. Várias morais e diversidade de sistemas de valores ganharam lugar na sociedade, sendo necessária uma nova abordagem ética, secular.

Ao lado de tais fatores externos, acontecimentos geraram escândalos, determinando a intervenção dos organismos públicos e do Estado no campo biomédico. Tanto na pesquisa, quanto na clínica e políticas de saúde, foram verificadas tais eventualidades.

Depois da noção das atrocidades cometidas com os seres humanos nos campos de concentração alemães, especialmente no que diz respeito às experimentações com seres humanos, foram elaboradas dez regras, hoje correspondente ao que chamamos de Código de Nuremberg, sobre as experiências com seres humanos. Tais regras não exerceram grande influência nos Estados Unidos, porque entendiam que as regras eram só para os outros, já que os violadores eram os nazistas. No entanto, também lá, a pesquisa originou vários escândalos, como a ingestão de talidomida por mulheres grávidas e o nascimento de várias crianças com más-formações congênitas importantes. Tal medicamento foi usado como teste por pessoas que não sabiam que estavam participando de uma pesquisa. Faltou, portanto, o consentimento livre e esclarecido de todos. Outros escândalos, revelado pelo médico Henry K. Beecher, em artigo escrito no ano de 1966, relatavam, por exemplo, a injeção de células cancerosas em vinte e dois idosos senis e hospitalizados com o objetivo de estudar a resposta imunológica e, ainda, a injeção do vírus da hepatite em várias centenas de crianças residentes em lares para portadores de deficiência mental. Com a indignação do público, ainda mais com a afirmação do autor de que a lista inicial comportaria mais de cinquenta exemplos como esse, as autoridades americanas estabeleceram as Institutional Review Boards (IRB), juntas encarregadas de examinar as condições éticas das pesquisas sobre o ser humano.

Mesmo depois disso, outros escândalos também foram revelados nos Estados Unidos, como por exemplo o caso Tuskegee, de 1972, cuja pesquisa consistia em observar a progressão da sífilis em um grupo de mais de quatrocentos negros atingidos pela doença e deixados sem tratamento, alguns deles por mais de quarenta anos, enquanto a eficácia da penicilina para o tratamento já era conhecida. Depois de outras revelações também desse tipo, o Congresso Americano estabeleceu, em 1974, a National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research que produziu, em 1978, o Belmont Report, relatório que apresentava os princípios éticos que deviam guiar toda a experiência com seres humanos. Os princípios citados no referido relatório eram do da beneficência, em atenção aos riscos e benefícios, o princípio da autonomia, com a necessidade do consentimento informado e o princípio da justiça, no que diz respeito à equidade quanto aos sujeitos de experimentação-.

No que concerne aos tratamentos e às terapias descobertas, outros casos polêmicos surgiram durante o mesmo período, como o caso John Hopkins Baby, em 1969. Uma criança havia nascido com oclusão intestinal e uma doença mental ligada à Síndrome de Down. Os pais, informados da situação, não deram permissão para que fosse feita uma cirurgia para corrigir a oclusão intestinal e, a criança morreu de fome quinze dias depois. Outro caso de grande repercussão foi de Karen Ann Quinlan. A equipe médica recusava-se a atender ao pedido, então seus pais requereram judicialmente autorização para separar a sua filha, em coma há vários meses, do respirador que a mantinha viva. A decisão judicial foi no sentido da deliberação ficar a cargo do pai, desde que o mesmo obtivesse concordância da família, médicos e comitê de ética do hospital, especialmente a respeito da irreversibilidade do coma.

Outro caso que obteve fama foi o Baby Doe, de 1982. A criança apresentava uma trissomia do cromossomo 21, atresia do esôfago e fístula traquoesofagiana. Os pais não permitiram a cirurgia e a criança morreu seis dias depois. Outros casos, envolvendo até crianças maiores, ocorreram na mesma época, suscitando reflexões nos meios de saúde sobre a necessidade de se dotar de instâncias de reflexão apropriadas.

Em relação às políticas públicas, evidenciava-se o limite dos recursos. Não há estrutura para o atendimento de todos e, questiona-se, de quem é o acesso aos tratamentos e como é feita a lista de espera. Interessante foi o caso de Oregon, nos Estados Unidos, onde o governo decidiu limitar o acesso a certos tratamentos caros e oferecer tratamentos básicos a uma maior quantidade de pessoas. Porém, a recusa de um transplante de medula para uma criança de sete anos com leucemia, provocou um clamor nacional.

Comentando as etapas de desenvolvimento da bioética segundo a socióloga americana Renée C. Fox, Durand, sintetiza que sua evolução se deu em três etapas: a primeira, do início dos anos 1960 até meados da década de 1970, marcada pela experiência com seres humanos e a importância do consentimento livre e informado das pessoas; a segunda, até metade dos anos 1980, com o interesse sobre e início e fim da vida e a terceira fase, a partir dos meados da década de 1980, com a preocupação da sociedade como um todo na restrição orçamentária, relação custo-benefício e distribuição dos recursos.

Dentro dessa síntese histórica, portanto, a bioética acaba se firmando como uma disciplina multifacetária, indispensável no estudo tanto das ciências médicas, como humanas. Junges, apontando para uma definição global, observa:

“A definição de Bioética que se tornou clássica e se impôs foi proposta pela renomada Enciclopédia de Bioética do Instituto Kennedy: “Bioética é o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto esta conduta é examinada à luz de valores e princípios morais.”

No entanto, quando tal definição apontou a palavra “princípios”, direcionou a bioética para um modelo de ética aplicada a problemas morais, excluindo “outros tipos de referenciais como convicções, atitudes, virtudes, emoções que poderiam também servir de fontes de conhecimento moral”.

Assim, apesar de tantos e diversos antecedentes, a bioética foi marcada pelo Belmont Report, impulsionado pelo Kennedy Institute of Ethics, dando uma abordagem particular à bioética, chamada de principialismo que, tanto nos Estados Unidos quanto em outros lugares, não é unânime.

3. A abordagem da bioética segundo o Principialismo

A questão do principialismo é tão forte que, alguns autores, criticam a bioética em geral sem ter a consciência de que atacam uma corrente particular. É uma abordagem clássica, também conhecida como corrente canônica, e o seu estudo, segundo Durand  “centra-se sobretudo em alguns princípios cuja aplicação supostamente leva à solução dos dilemas éticos na saúde: autônoma, beneficência, não-maleficiência, justiça, confidencialidade”. Essa abordagem, tal como feita pelos americanos, “ganham, atualmente, força de lei no plano internacional. Os quatro princípios da bioética americana simplesmente se tornaram os princípios da bioética”.

A principal crítica a tal abordagem é de que os princípios são tomados como enunciados, sem preocupação na sua legitimação. Não há uma teoria bioética, embora haja uma prática que apele a tais princípios. Ou seja, há um pragmatismo ético, sendo os princípios aplicados de forma mecânica, automática.

Além disso, vem de pontos de partida e matrizes de pensamento diversas, não havendo uma unidade sistemática.

Como bem anotado por Junges, os três princípios clássicos adotados pela bioética – de acordo com o Relatório Belmont – são oriundos de três diferentes tradições éticas: o princípio da autonomia reporta-se à filosófica moral de Kant, o princípio da beneficência ao utilitarismo de S. Mill e o princípio da justiça ao contratualismo de J. Rawls.

“Essa falta de uma unidade cria problemas práticos e teóricos. Se não existe uma base sistemática que interligue e unifique os princípios entre si, não existe também uma orientação unitária na criação de leis específicas para a ação que sejam claras, coerentes e compreensivas e nem justificação para estas leis”.

Não é o foco deste trabalho a pesquisa aprofundada sobre as questões que abordam o principialismo. No entanto, sua citação se faz necessária para que fique justificado o acesso ao princípio da autonomia e seus desdobramentos, onde se aborda a questão da capacidade para decidir.

“O puro principialismo peca por ecletismo, racionalismo e deontologismo”. Outros pontos teóricos devem, então, ser adotados para que exista uma integralidade no uso ideal dos princípios. Os conflitos teóricos da bioética contemporânea são consideráveis, e até mesmo os precursores do principialismo, Beauchamp e Childress anotam:

“Apesar de havermos descrito nossa abordagem como baseada em princípios, rejeitamos a premissa de que se deve defender um único tipo de teoria, exclusivamente baseado nos princípios, nas virtudes, nos direitos, nos casos, e assim por diante. No pensamento moral, frequentemente se misturam recursos a princípios, regras, direitos, virtudes, paixões, analogias, paradigmas, parábolas e interpretações. Atribuir prioridade a um desses fatores como o elemento-chave é uma pretensão duvidosa, assim como a tentativa de dispensar completamente a teoria ética. Os aspectos mais gerais (os princípios, as regras, as teorias, etc) e os mais específicos (os sentimentos, as percepções, os julgamentos de casos, as práticas, as parábolas etc.) devem ser ligados em nossa deliberação moral.”

Assim, não se adota, de pronto, uma via paralela ao principialismo. Há de ser feita uma nova interpretação dos princípios da bioética americana. E para esta reinterpretação do modelo clássico, não há abandono dos princípios, mas menção, também, ao aspecto do respeito à dignidade da pessoa humana. Ainda se atenta à relação médico paciente, de forma que seja baseada em compaixão, empatia e altruísmo, e à justiça do encontro clínico, passando-se do indivíduo ao cidadão para que, num contexto social, seja tomada a decisão. Não basta, assim, a aplicação dos princípios clássicos, atuando como “mantras”, como outrora. A dignidade humana é a categoria primordial da bioética  e o seu respeito emerge no “biodireito como marco irrenunciável em que se deve desenvolver a atividade biomédica, tanto no âmbito clínico como no da pesquisa científica”.

4. Leque de princípios e os principais princípios da bioética

Como analisado anteriormente, diversos fatos contribuíram para evolução da bioética como ciência. Frente a diversos casos de manipulação, usando enfermos social e mentalmente fragilizados como sujeitos de experimentação, conhecidos pelo público no início dos anos 70 nos EUA, o congresso americano criou, em 1974, a National Comission for the Protection os Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, essa comissão tinha por objetivo realizar uma pesquisa e um estudo completo que identificasse os princípios éticos básicos que deveriam nortear a experimentação, em seres humanos, nas ciências do comportamento e na biomedicina.

Ao longo dos anos, essa Comissão apresentou seis relatórios, que apresentavam ideias e conclusões de quais seriam os pontos norteadores das experiências científicas que se desenvolviam, um desses relatórios, o Belmonte Reporte, em 1978, foi o estudo responsável por elencar quais os principais princípios da Bioética.

Os trabalhos da Comissão representam o estudo mais completo que jamais foi feito dos problemas éticos suscitados pela pesquisa que envolve seres humanos. A Comissão manteve e definiu três princípios principais, fundamentais, que servem de base à ética da pesquisa: o respeito pelas pessoas, a beneficência e a justiça. Cada um desses princípios contém exigências (ou regras) múltiplas.

Muito embora a Belmont Report se refira apenas à pesquisa envolvendo seres humanos, suas análises foram rapidamente usadas para o conjunto do campo bioético, especialmente na ética clínica.

Alguns autores subdividem o segundo princípio, o da beneficência, em: beneficência e não-maleficência, chegando, portanto, a quatro princípios fundamentais. Outros acrescentam princípios, exemplo a confidencialidade, ou omitem outros, por exemplo, a justiça. O Belmont Report indicava, aliás, que poderia haver outros princípios além dos três principais que foram mantidos. O Enunciado de Política dos três conselhos canadenses enumera oito deles: respeito à dignidade humana, respeito ao consentimento livre e informado, respeito às pessoas vulneráveis, respeito à vida privada e às informações pessoais, respeito à justiça e à integração, equilíbrio das vantagens e dos inconvenientes, redução dos inconvenientes, otimização das vantagens.

Outros que podem ser citados, não comercialização do corpo humano, solidariedade, respeito à vida, proteção da qualidade de vida, respeito aos vínculos familiares, proteção do patrimônio genético humano.

A literatura bioética cita e analisa diversos princípios, conforme visto, entretanto, os existem aqueles que se destacam, e, por essa razão merecem ser analisados mais detidamente.

Os três princípios apresentados pelo Relatório Belmont se tornaram clássicos dentro da Bioética, bem como os procedimentos práticos dele derivados para a solução de conflitos éticos. Os três princípios foram identificados como: 1) beneficência (atenção aos riscos e benefícios); 2) autonomia (necessidade de consentimento informado; 3) justiça (equidade quanto aos sujeitos de experimentação).

Segundo o relatório, esses princípios querem ajudar aos cientistas, sujeitos de experimentação, avaliadores e aos cidadãos interessados em compreender os conceitos éticos inerentes à experimentação com seres humanos. O Relatório Belmont relaciona-se com a experimentação em seres humanos. A prática clínica e assistencial não entrava em seu horizonte. Logo se colocou a questão: não seria possível aplicar estes princípios ao exercício da medicina, livrando-o do velho enfoque de deontologia profissional?

Este foi o objetivo da obra, que já se tornou clássica, de Tom L. Beuchamp e James F. Childress, Principles of Biomedical Ethics (New York/ Oxford: Oxford University Press, 1979) com uma segunda edição em 1983. Ela significou uma mudança em relação aos velhos manuais de Ética médica, definidos pela perspectiva do juramento e do código. A obra de Beuchamp e Childress assume o enfoque dos princípios e irá determinar o tipo de fundamentação e argumentação ética assumida pela Bioética anglo-saxonica. Mais tarde, apareceu a obra de H.T. Engenlhardt, The Foundations os Bioethics (New York/Oxford: Oxford University Press, 1986) que propõe uma ética para o que ele chama de “estranhos morais” e no contexto de uma sociedade plural e obrigatória na história da Bioética, porque abriram um caminho novo para a ética médica.

A apresentação dos três princípios clássicos da Bioética desdobrará o princípio da beneficência em dois: não-maleficência e beneficência, seguindo a sugestão de Beuchamp e Childress. O princípio da autonomia é o ponto de referencia ético para o enfermo, os princípios de beneficência e de não-maleficência para o médico e o princípio da justiça para as instituições de saúde e a sociedade no tratamento de questões relativas à vida e à saúde dos seres humanos.

4.1. Autonomia

O conceito de autonomia não é unívoco. No entanto, na bioética, prevalece a concepção de que se trata do poder de tomada de decisão no cuidado da saúde. Beauchamps e Childress entendem que a autonomia é a atuação livre de interferências dos outros, além da livre de limitações pessoais que obstam a escolha expressiva da intenção. É a liberdade e qualidade do agente. É com base nas concepções destes autores, precursores na bioética, que o presente estudo se desenvolve.

Como justificativa da autonomia, importante mencionar que Kant já ressaltava que todas as pessoas têm valor incondicional, e capacidade para determinar o seu próprio destino. Para ele, pessoas são vistas como fins e não como meios.

No que diz respeito a pessoas que, pela sua própria natureza, não são autônomas, não há que se falar na aplicabilidade da autonomia na forma explicitada.

Mas para as pessoas que tem plena capacidade mental, não necessariamente, a jurídica, não basta uma liberdade formal. Materialmente, no caso concreto, a apreciação da liberdade e autonomia deve ser garantida da forma mais ampla possível, como uma demonstração da garantia de uma liberdade de qualidade. Por exemplo: há possibilidade de se afirmar que um alcoólatra tem liberdade? De fato, ele identifica os desejos de preferência básicos, mas a sua realização pode ocorrer por meio de desejos ou preferências de nível superior.

E ter autonomia significa dominar as preferências básicas e de nível superior. No nível básico, o alcoólatra quer beber. No nível superior, deseja parar de beber. E este prevalece sobre o inferior.

Concebendo a autonomia na bioética, questiona-se qual o desejo mais racional e mais autônomo. Não há uma conclusão contundente que responda, porque o desejo mais racional e autônomo pode ser considerado dessa forma apenas por ser o mais forte. Os desejos de segunda ordem podem ser ocasionados pelo poder dos desejos de primeira ordem ou pela influência de uma condição tal como o alcoolismo que é contrária à autonomia.  Isso não distingue a autonomia da não autonomia. Colocar os desejos em ordem não tem sentido e complica desnecessariamente a teoria da autonomia. É como se precisasse de uma autenticidade desnecessária.

Assim, para os autores, ação autônoma é aquela que o agente age intencionalmente; com entendimento (grau substancial, no caso concreto, de entendimento); sem influências controladoras que determinem sua ação, compreendendo que, na verdade, inteiramente autônoma, nenhuma decisão é. As pessoas são sujeitas às autoridades legais, morais, religiosas, familiares e ainda assim, gozarem de autonomia.

Tal compatibilidade entre autonomia e autoridade é, portanto, possível. A pessoa pode escolher e aceitar submeter-se à autoridade. Como exemplo, tem-se a testemunha de Jeová: aceita a autoridade de sua instituição religiosa, tendo autonomia para dizer não à transfusão de sangue. O mesmo se diz em relação à tradição moral.

Por outro lado, é importante ressaltar que há limitações à autonomia já que, como princípio, deve ser aplicada em sua maior forma possível, mas pode ser excepcionada. Existe a possibilidade do direito de liberdade e autonomia ser restringido pelo direito de outrem. Nesse aspecto, há um amplo acordo da doutrina. Também se menciona a validez prima facie da autonomia, tendo em vista que pode existir uma ou algumas considerações morais concorrentes. Por exemplo, o paciente terminal com câncer pergunta ao médico se morrerá muito em breve e o médico mente. Ou seja, em alguns casos, o respeito à autonomia é menos importante que manifestações de beneficência e compaixão.

A autonomia também pode ser vista em sua forma negativa e positiva. Na forma negativa, a pessoa não deve sofrer pressão de ninguém. Em relação à positiva, deve haver revelação de informações e encorajamento da decisão autônoma, especialmente com regras morais: dizer a verdade; respeitar a privacidade dos outros; proteger informações confidenciais; obter consentimento para intervenção nos pacientes; quando solicitado, ajudar os outros a tomar decisões importantes.

Assim, o consentimento do paciente deve ser informado e expresso. Além disso, o consentimento pode mudar no tempo, não é uma cláusula que, uma vez formulada, é intangível. Veja-se o seguinte caso: um homem de 28 anos decidiu parar de fazer diálise renal em razão do seu estilo de vida e custo que sua sobrevivência trazia para a família. Tinha diabetes, era cego e não podia andar. Sua esposa e seu médico concordaram com o pedido, que incluía o consentimento de que mesmo que ele assim pedisse, sob influência da dor ou de outras mudanças corporais que ocorressem por estar morrendo. Ocorre que, perto de morrer, acordou com dor e pediu a diálise. A esposa e médico negaram e ele morreu 4 horas depois. A autonomia do paciente poderia, sim, ter mudado com o tempo.

Por outro lado, também devem ser respeitadas as decisões autônomas que antecedem períodos de incapacidade. Por exemplo: uma testemunha de Jeová chega consciente ao hospital e proíbe qualquer tipo de transfusão de sangue. Logo fica inconsciente e necessita da transfusão: sua vontade é respeitada como forma de manifestação da autonomia.

Quanto à capacidade, os seus julgamentos fazem o papel dos porteiros: se tem capacidade, a autonomia pode ser aceita, se não tem, não pode – quem está acima ou abaixo da marca. Quando se constata a incapacidade, deve se verificar se a mesma pode ser restaurada. Se puder, deve-se esperar para que se respeite a autonomia do paciente.

É importante ressaltar que a capacidade está totalmente ligada à autonomia, mas com ela, não se confunde. Capacidade é habilidade de executar uma tarefa e autonomia é o autogoverno.

Uma das possibilidades de verificação da correta tomada de decisão encontra-se na estratégia da escala móvel da capacidade: os modelos de capacidade se modificam de acordo com o risco da decisão. Quanto maior o risco, maior a capacidade que deve ser exigida.

Em qualquer caso, o consentimento informado é a porta de entrada ao respeito à autonomia.

Tal consentimento informado é um ato complexo. Reúne elementos de competência, revelação, entendimento, voluntariedade e o próprio consentimento. Inicialmente, exige-se a capacidade de entender e voluntariedade ao decidir. Isso se configura na competência para a realização do ato.

Como elementos da informação, é indispensável a revelação da própria informação material, a recomendação de um plano e o entendimento da revelação e recomendação.

A revelação é baseada numa obrigação geral de exercitar um cuidado razoável, fornecendo informações. Tais informações devem ser transmitidas de maneira adequada. Pode se dar pelo modelo de prática profissional, ou seja, pelas práticas habituais da comunidade profissional. É o modelo do médico sensato. Pode se dar, também, pelo modelo da pessoa sensata: a informação a ser revelada é determinada por referência a uma hipotética pessoa sensata. Há, ainda, o modelo subjetivo, que se adequa às necessidades de informação da pessoa específica. Moralmente, é o preferível, por trazer como solução uma troca mútua de informação.

Importante ressaltar a possibilidade, também, da não revelação intencional, quando for o caso. Alguns tipos de pesquisa são incompatíveis com a revelação completa (nesse caso, a pesquisa não poderá ser justificada se envolver risco e se o participante não estava ciente do risco) e alguns médicos alegam que a não revelação beneficia o paciente.

Além do caso de pesquisas, com as ressalvas citadas, a não revelação intencional também pode se dar em caso de privilégio terapêutico, para paciente deprimido, instável, emocionalmente esgotado. Quanto ao uso terapêutico de placebos, utiliza-se o fundamento da beneficência, deixando de lado, de fato, a autonomia. Tal ação, também, exige uma discussão maior.

No que diz respeito ao entendimento que se exige para implementar a autonomia, não se trata de entender tudo, mas pelo menos o diagnóstico, o prognóstico, natureza e propósito da intervenção, além das alternativas a ela, riscos e benefícios, com as recomendações.

Quanto aos problemas no processamento das informações pelo paciente, deve-se levar em conta a sobrecarga de informações e o uso de termos não familiares. Deve ser comunicado os aspectos positivos e negativos da informação.

Além disso, pode haver problemas de não aceitação e falsas crenças: a pessoa pode compreender a informação, mas não aceitá-la. Ela não acredita na doença que tem, por exemplo. E se há rejeição, pelo paciente, em receber informações? Elas não devem ser impostas.

Aqui, percebe-se o problema da renúncia ao consentimento informado. O paciente delega a autoridade da decisão ao médico ou pede para não ser informado. Surge, então, um problema prático: poderia uma renúncia geral abranger consentimento específico? Uma testemunha de Jeová que autorize tudo para se salvar, autorizou a transfusão de sangue?

Como elementos do consentimento, tem-se, então, uma decisão em favor de um plano e autorização do plano escolhido.

No que diz respeito à voluntariedade necessária no consentimento informado, a pessoa deve ser independente em relação às influências manipuladoras e coercitivas de outros. Voluntariedade não é autonomia porque a pessoa pode ter vontade sob uso de droga, por exemplo. Porém, a influência, nem sempre é controladora. Ela pode ser em forma de coerção (ameaça séria de dano ou violência), persuasão (a pessoa é convencida a acreditar em algo pelo mérito das razões expostas por outra pessoa), manipulação (conduta que inclina a pessoa a fazer o que o manipulador quer). De certo que a coerção e manipulação anulam a autonomia da pessoa.

Por outro lado, existem as decisões substitutas, para pacientes não autônomos. Neste caso, pode-se utilizar o melhor interesse, o julgamento substituto e a pura autonomia. No julgamento substituto, o paciente tem o direito de decidir, mas é incapaz de exercê-lo. Por isso, nomeia-se um substituto seu. Só é aplicável para paciente que já foi capaz e a aquele que pode tomar a atitude que o paciente tomaria. Pela pura autonomia, usa-se de julgamentos autônomos feitos anteriormente de forma explícita pelo paciente sem autonomia. A questão é quem decidir qual decisão substituta adotar.

É necessária uma reflexão que leva à superação do paternalismo médico, para que a tomada de decisões seja de forma conjunta, como manifestação do consentimento informado. Vê-se, nitidamente, que o juramento de Hipócrates e os códigos clássicos caracterizam-se pelo paternalismo, como se o paciente fosse uma criança. Durante muito tempo o paternalismo determinou a tradição médica. Ficava evidenciada a superioridade moral do médico.

Porém, abusos fizeram com que tal paternalismo começasse a ser questionado. Surgiu a consciência de que todo doente é sujeito e não pode ser objeto nem de beneficência. Os pacientes começaram a exigir uma participação ativa no diagnóstico e no prognóstico. Surgiu então a exigência do consentimento informado. Os primeiros direitos dos pacientes, então, surgem do princípio da autonomia. Ou seja, o sujeito tem o direito de decidir autonomamente a aceitação ou rejeição do que se quer fazer com ele, tanto no diagnóstico quanto na terapêutica.

A superação do paternalismo não significa, necessariamente, a introdução de uma perspectiva contratualista, porque falta igualdade no intercâmbio. Não é transferir a responsabilidade do médico para o enfermo também, mas promover, no enfermo, a subjetividade e a autonomia.

Com tais questões levantadas e em discussão, S. Mill propôs que se leve em consideração a seguinte regra: enquanto a ação de um agente autônomo não infringe a ação de outro agente autônomo, ele deve ser livre de implementar a ação que quiser. Neste caso, teria a resposta a uma questão já proposta: o aborto de uma gravidez de uma adolescente de 14 anos que não deseja tal interrupção, contra a vontade de seus representantes legais.      As escolhas não devem ser decididas por outros, mesmo que fossem objetivamente para o bem do sujeito. Isso é o autogoverno decorrente da autonomia.

Assim, a autonomia de qualidade é o próprio consentimento informado, para prevenir a ignorância. O consentimento deve ser genuinamente voluntário e basear-se na revelação adequada das informações. Leva-se em consideração a competência para tal consentimento, em razão das condições físicas e psicológicas, dependendo do contexto apresentado. A competência é determinada, então, por três condições: capacidade de tomar decisões baseado em motivos racionais; capacidade de chegar a resultados razoáveis através de decisões e a própria capacidade de tomar decisão.

As questões problemáticas da bioética no que tangem à autonomia do paciente são inúmeras. Não há uma resposta padrão a todos os casos, mas, havendo dúvida sobre a capacidade, competência, voluntariedade e entendimento, alguém deve estar autorizado a decidir. Claro que, em primeiro lugar o próprio enfermo deve decidir. Se este não pode, o seu melhor interesse deve ser respeitado. Tal “melhor interesse, com certeza, ocorre quando a medicina realiza os seus objetivos constitutivos: prevenir, curar, ter o cuidado de reabilitar uma função e aliviar a dor. Se não busca nada disso, com certeza, não há interesse do paciente. Também deve se levar em conta qual escolha faria o enfermo se estivesse consciente, através de sua biografia, para verificar os seus valores, projetos e esperanças.

4.2. Não maleficência

Este princípio determina a obrigação de não infligir danos a quem quer que seja de maneira intencional. Na ética médica, ele esteve intimamente associado a máxima “acima de tudo, não causar dano”. De acordo com alguns autores, este princípio está relacionado com o juramento de Hipócrates, ligado a ética médica, quando em um trecho do referido juramento é dito “usarei o tratamento para ajudar o doente, de acordo com a minha habilidade e com o meu julgamento, mas jamais o usarei para lesá-lo ou prejudica-lo”.

Importante se faz, analisar o princípio da não maleficência para identificar suas implicações para bioética.

Alguns autores não estabelecem distinções entre a beneficência e a não maleficência, mas para Beauchamp e Childress “combiná-los obscurece distinções relevantes”. Pois as obrigações de não causar danos ou prejudicar (como matar, mutilar, roubar) são completamente diferentes das obrigações de ajudar os outros.

Não é tarefa fácil identificar qual desses dois princípios possui maior importância, dependendo do caso concreto os danos (por exemplo, furada de agulha) são desconsiderados em prol do benefício que dele advém (por exemplo, a cura de uma doença).

Importante caso é lembrado por Beauchamp e Childress para analisar os limites entre os princípios da beneficência e da não maleficência.

“Robert Mcfall estava morrendo de anemia aplástica, e seus médicos recomendaram um transplante de medula óssea extraído de um doador geneticamente compatível, o que faria com que suas chances de sobreviver por mais um ano passassem de um índice de vinte e cinco por cento para um intervalo de quarenta a sessenta por cento. O primo do paciente, David Shimp, concordou em se sobmeter aos exames para determinar se seria um doador adequado. Depois de completar os exames de compatibilidade de tecido, ele se recusou a fazer o exame de compatibilidade genética. Havia mudado de ideia sobre a doação”.

Sendo ajuizada uma ação, para obrigar o primo a realizar os exames restantes, e caso desse positivo, a se submeter obrigatoriamente ao procedimento, o advogado do enfermo argumentou que ao concordar em se submeter ao primeiro exame e depois desistir havia provocado um prejuízo enorme ao paciente, considerado um atraso de proporções críticas, o que teria violado o princípio da não maleficência. O juiz decidiu em negar o pedido, pois considerou que o primo não violou nenhuma obrigação legal, mas que sua atitude foi moralmente reprovável. Este caso serve para constatar a dificuldade em identificar as obrigações específicas implicadas pelos princípios da não maleficência e da beneficência.

Para se conceituar o principio da não maleficência, é indispensável a utilização dos termos prejudicar ou lesar, estes querem dizer: fazer mal, cometer injustiça ou violação.

Para Beauchamp e Childress há diferença entre prejudicar e lesar. Lesar envolve prejudicar os direitos de alguém, enquanto prejudicar não envolve necessariamente uma violação.

Em conclusão, o principio da não maleficência pressupõe que é dever de todos, proteger as pessoas contra alguns tipos e graus de danos, sendo dever ainda, evitar que danos sejam causados, para os principais autores da bioética, existe uma verdadeira obrigação positiva em proporcionar benefícios, tais como, a assistência à saúde.

4.3. Beneficência

    

Outro importante princípio da bioética, e que decorre naturalmente do princípio da não-maleficência, é o princípio da beneficência. De fato, a beneficência, como a etimologia indica (ben-facere), refere-se à ação a ser feita. Ela comporta dois fatores: não fazer o mal ao próximo ou, melhor, positivamente, fazer-lhe o bem. Assim, por exemplo, no campo da saúde, esses dois aspectos podem ser traduzidos do seguinte modo: não usar a arte médica para causar males, injustiças ou para prejudicar; aplicar os tratamentos exigidos para aliviar o doente, melhorar seu bem-estar e, se possível, faze-lo recobrar a saúde. É, pois, ao mesmo tempo um dever, uma virtude, um princípio, um valor, a palavra dever designando diretamente a obrigação moral ou a norma; a virtude, a atitude interior; o princípio, a inspiração e a legitimação; o valor, uma espécie de objetivo a ser atingido.

“O Princípio da Beneficência não nos diz como distribuir o bem e o mal. Só nos manda promover o primeiro e evitar o segundo. Quando se manifestam exigências conflitantes, o mais que ele pode fazer é aconselhar-nos a conseguir a maior porção possível de bem em relação ao mal.”

Nesse sentido, percebe-se que Frankena aproxima bastante a beneficência da não-maleficência, na medida em que este estabelece um non nocere (não fazer o mal), como já visto. Por seu turno, o Relatório Belmont seguiu a mesma tendência do pensamento de Frankena, isto é, incluiu a Não-Maleficência como parte da Beneficência. O Relatório estabeleceu que duas regras gerais podem ser formuladas como expressões complementares de uma ação benéfica: a) não causar o mal e  b) maximizar os benefícios possíveis e minimizar os danos possíveis.

Para José Roque Junges, segundo o relatório Belmont, estes princípios querem ajudar aos cientistas, sujeitos de experimentação, avaliadores e cidadãos interessados em commpreender os conceitos éticos inerentes à experimentação com seres humanos. O Relatório Belmont relaciona-se com a experimentação em seres humanos. A prática clínica e assistencial não entrava em seu horizonte. Logo se colocou a questão: não seria possível aplicar estes princípios ao exercício da medicina, livrando-o do velho enfoque de deontologia profissional?

Como dito anteriormente, Beauchamp e Childress distinguem a beneficência da não-maleficência, aduzindo que a beneficência corresponde a uma ação feita no benefício de outros, sendo aquele que estabelece uma obrigação moral de agir em benefício dos outros, ao tempo ainda em que também destaca ser importante não confundir estes dois últimos conceitos com a benevolência, que é a virtude de se dispor a agir no benefício dos outros.                  

Ao que se percebe, a questão da moral e da ética termina por permear a todos os princípios trabalhados pela bioética, estando ambos intimamente ligados.

4.4 Justiça

O quarto princípio a ser estudado é o princípio de justiça. Justiça, em termos de bioética, refere-se à igualdade de tratamento e à justa distribuição das verbas do Estado para a saúde, a pesquisa, e a prevenção, para todos aqueles que fazem parte da sociedade. Para Guy Durand, “há justiça quando se obtém o que se merece, recebe-se o que é devido, colhe-se aquilo a que se tem direito”.

A origem histórica do princípio da justiça remonta ao filósofo Aristóteles, fundador da ética como ciência, em meio à crise ética grega, o pensador examina a justiça como uma excelência moral fundamental, a maior das virtudes, o faz na sua obra  “Ética a Nicômaco”, Livro V, e, a partir da análise do comportamento justo e do injusto, proclama a justiça distributiva e a corretiva – esta última subdividida em justiça comutativa e judicial – distinção aceita de maneira geral e prestigiada até os dias atuais.

Pela doutrina ética, podem ser analisados dois tipos de justiça, a justiça comutativa se refere à justa relação entre dois indivíduos, dois grupos, à retidão nas trocas. Seria dar a cada um o que lhe é devido, devolver exatamente o que lhe foi tomado de empréstimo, o que foi prometido, fornecer um salário adequado ao trabalho fornecido.

E a Justiça distributiva, que se refere antes à relação entre a autoridade e o individuo, o individuo e a autoridade. Ela diz respeito à justa repartição dos encargos e das vantagens da vida social. De modo mais concreto, designa, por um lado, a distribuição equitativa dos custos e benefícios na sociedade (impostos, recursos, privilégios) e, por outro, o justo acesso a esses recursos.

Na bioética fala-se mais na justiça distributiva que na cumulativa. Podendo significar, por exemplo, a retidão na alocação de recursos, no acesso a saúde proporcionado por esses recursos.

Como objetivo do princípio da justiça, a doutrina costuma enfatizar que seria evitar a exploração de certos grupos de pessoas, por exemplo, crianças, prisioneiros, negros em pesquisas e desigualdade no acesso a tratamentos, transplantes, entre outros.

Da análise da literatura básica da Bioética são listadas oito concepções de justiça, ou princípios materiais de justiça:

a) O mérito pessoal

b) O valor social de um indivíduo

c) O bem do maior número

d) O respeito da livre escolha

e) A prioridade aos mais desfavorecidos

f) Os tratamentos fundamentais de cada um

g) Igualdade de tratamento em casos similares

h) A referência ao acaso.

As teorias “O mérito pessoal, valor social de um indivíduo; bem do maior número”, estão ligadas à escola utilitarista; Já “O respeito da livre escolha”, está ligada a escola liberalista; as “A prioridade aos mais desfavorecidos, Os tratamentos fundamentais de cada um, Igualdade de tratamento em casos similares” são correntes do igualitarismo.

A maioria das sociedades recorre a vários desses princípios materiais para formular políticas públicas, valendo-se de diferentes princípios em esferas e contextos.

Por exemplo, os Estados Unidos filia-se a uma corrente mais liberalista temperada por um sistema de seguridade social para os mais desfavorecidos e para as pessoas idosas. Já o Canadá, está vinculado às corrente utilitarista e igualitarista.

5. Conclusão

O presente trabalho teve por objetivo analisar os princípios mais relevantes da Bioética. Para tanto, inicialmente, buscou-se proceder a uma breve análise do desenvolvimento da bioética como ciência.

Verificou-se que o termo “bioética”, foi inicialmente proferido pelo médico americano Van Rensselaer Potter, através de um artigo seu, publicado em 1970: Bioethics, the Science of Survival.

Tem-se que a bioética se desenvolveu em razão de diversos fatores, como por exemplo, desenvolvimento tecnocientífico, a manifestação dos direitos individuais, a modificação da relação médico paciente e o pluralismo social, o crescimento econômico do pós-guerra.

Com o crescimento científico, ocasionado por pesquisas, diversos questionamentos éticos acabam surgindo via de consequência. Chegou-se ao conceito de bioética como sendo o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto esta conduta é examinada à luz de valores e princípios morais.

Neste breve ensaios foram elencados os diversos princípios mencionados pela doutrina como sendo informadores da bioética.

Entretanto, foram selecionados os quatro princípios considerados mais importantes para uma análise mais detida, são eles: a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a justiça.

Quanto à autonomia, verificou-se que o conceito não é unívoco. Prevalecendo a concepção de que se trata do poder de tomada de decisão no cuidado da saúde. Beauchamps e Childress, os principais autores analisados, entendem que a autonomia é a atuação livre de interferências dos outros, além da livre de limitações pessoais que obstam a escolha expressiva da intenção. É a liberdade e qualidade do agente. É com base nas concepções destes autores, precursores na bioética, que o presente estudo se desenvolve.

Não maleficência é princípio que determina a obrigação de não infligir danos a quem quer que seja de maneira intencional.

O Princípio da Beneficência não nos diz como distribuir o bem e o mal. Só nos manda promover o primeiro e evitar o segundo. Quando se manifestam exigências conflitantes, o mais que ele pode fazer é aconselhar-nos a conseguir a maior porção possível de bem em relação ao mal.

E o princípio da justiça se refere à igualdade de tratamento e à justa distribuição das verbas do Estado para a saúde, a pesquisa, e a prevenção, para todos aqueles que fazem parte da sociedade.

Pretendeu-se fazer uma abordagem geral sobre os princípios da bioética para que seja possível ter uma visão ampla dos pontos básicos que norteiam a matéria.

 

Referências
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VARGA, Andrew C. Problemas de bioética. Editora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 1980.

Informações Sobre o Autor

Lorena Duarte Lopes Maia

Mestra em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS (2015). Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (2007). Analista Judicial do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí.


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