Desvio de finalidade e documentação escrita dos atos administrativos: os limites entre a modernização e as velhas práticas da administração pública brasileira

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar e discutir a relação entre o desvio de finalidade no serviço público brasileiro e a importância, para combatê-lo e preveni-lo, de documentar por escrito referidos atos, preferencialmente logo após a sua prática e em sistema de informação, a fim de evitar a impressão de papel. Sistematiza o autor nova classificação de atos administrativos a fim de melhor expor seu trabalho.

Palavras-chave: Desvio de finalidade. Administração pública. Ato administrativo. Discricionariedade.

Sumário: Introdução. 1 O desvio de finalidade. 1.1 Conceitos e definições. 1.2 A relação entre desvio de finalidade e ato discricionário. 1.3 A danosidade à administração pública da prática do desvio de finalidade. 1.3.1 O desvio de finalidade como nascedouro da corrupção. 1.3.2 O desvio de finalidade como nascedouro de assédios. 1.3.3 O desvio de finalidade como nascedouro de disfunções da administração pública burocrática e autorreferida. 2 A documentalidade dos atos administrativos. 2.1 O princípio da publicidade dos atos administrativos. 2.2 O princípio do formalismo moderado dos atos administrativos. 2.2.1 A avaliação de desempenho e o feedback do avaliado. 2.3 Classificações dos atos administrativos. 2.3.1 Atos administrativos quanto à possibilidade de documentação. 2.3.2 Atos administrativos quanto ao instrumento de documentação. 2.3.3 Atos administrativos quanto ao momento de sua documentação. 2.4 Os limites entre a documentação escrita e a burocracia. 3 A documentalidade escrita dos atos administrativos como forma de prevenir o desvio de finalidade. 3.1 A subjetividade nata do desvio de finalidade. 3.2 O benefício preventivo de se instar a externalização do desvio de finalidade. 3.3. O documento escrito e sua natural aptidão para inibir o desvio de finalidade. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

A Constituição brasileira é considerada uma das mais avançadas do mundo. Em recente entrevista concedida a Pedro Bial (programa Conversa Com Bial, da Rede Globo, veiculada em 22 de maio de 2017), o ex- ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), jurista Ayres Brito afirmou haver respeitadas opiniões afirmando que a república brasileira só passou a existir, de fato, com o advento da Constituição de 1988 (CRFB/88). Nesse diapasão, o serviço público brasileiro ganhou especial atenção constitucional, passando a ser normatizado em nível bastante detalhado, tudo permeado por modernas regras e princípios a sinalizar a perspectiva da eficiência, da transparência, da não-autorreferência e da economicidade ao cliente/cidadão/usuário dos serviços prestados pela administração pública brasileira.

Trinta anos praticamente já se passaram, e essa perspectiva virou expectativa, pois a prática demonstra que as coisas não andam como foi planejado. Não somos mais uma ditadura. Mas será que somos uma democracia? No âmbito do serviço público, será mesmo que deixamos o patrimonialismo de lado? Será que não somos mais burocratas? Alcançamos o gerencialismo estatal?

Para responder a essas perguntas é necessário buscar a relação do desvio de finalidade com o descompasso entre o sistema jurídico-constitucional brasileiro e as práticas antirrepublicanas que imperam no seio do serviço público. Será necessário ainda, que percebamos até onde a burocracia documental escrita – e o que isso de fato, significa – pode ser salutar, no resguardo a eventuais agentes públicos mal intencionados, mormente os do alto escalão do serviço público, como são os de nível estratégico e/ou institucional (casos do Ministério Público e Judiciário, onde existem membros e servidores).

Não merecemos uma administração pública autorreferida e atascada na burocracia (com papéis e formulários sacramentais), mas igualmente devemos evitar a todo custo um serviço público dissimulado, onde a mera função pró-forma é usada para esconder as verdadeiras intenções dos seus agentes públicos, que não têm como metas e objetivos o interesse público. Nos proporemos, assim, nesse trabalho, responder a essas indagações; buscar a relação conceitual e científica desses institutos, passando pela necessidade de sistematizar novos critérios de classificação do ato administrativo.

A metodologia usada será a pesquisa bibliográfica – no seu viés qualitativo -, aliada a deduções e induções lógicas, além da vivência de mais de 25 anos no serviço público, em cargos públicos de agente de polícia civil, professor e técnico do Ministério Público da União (MPU), neste, por mais de 23 anos.

1 O desvio de finalidade

O desvio de finalidade é, antes de tudo, uma conduta dissimulada praticada por agente público, no exercício da função, que demonstra a vontade – ou, pelo menos, a negligência desse praticante – em não se portar conforme a legalidade e moralidade, causando prejuízo à administração pública, na medida que o interesse público – a verdadeira finalidade do ato – não é alcançado.

1.1 Conceitos e definições

A fim de bem firmar os pressupostos deste trabalho, colacionam-se alguns conceitos de desvio de finalidade formulados por renomados administrativista. VALENTE (2009, p. 180) assevera que o abuso de poder consiste na:

“…exorbitância da autoridade conferida ao agente público e se manifesta no excesso de poder, pela ultrapassagem dos limites legais, e no desvio de poder, pela consecução de finalidades discrepantes daquelas almejadas pela norma concessiva da competência”.

MEIRELLES (2014, p. 119) percebe no desvio de poder (ou de finalidade) uma violação ideológica ou moral da lei, nos seguintes termos:

“O desvio de finalidade ou de poder é, assim, a violação ideológica da lei, ou, por outras palavras, a violação moral da lei, colimando o administrador público fins não queridos pelo legislador, ou utilizando motivos e meios imorais para a prática de um ato administrativo aparentemente legal. Tais desvios ocorrem, p. ex., quando a autoridade pública decreta uma desapropriação alegando utilidade pública mas visando, na realidade, a satisfazer interesse pessoal próprio ou favorecer algum particular com a subsequente transferência do bem expropriado; ou quando outorga uma permissão sem interesse coletivo; quando classifica um concorrente por favoritismo, sem atender aos fins objetivados pela licitação; ou, ainda, quando adquire tipo de veículo com características incompatíveis com a natureza do serviço a que se destinava.”

MEDAUAR (2010, p. 159) conceitua desvio de finalidade, chamando-o também de defeito de fim e desvio de poder, da seguinte forma:

“O defeito de fim, denominado desvio de poder ou desvio de finalidade, verifica-se quando o agente pratica ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência.”

Ela baseia-se no art. 2º, alínea e, da Lei da 4.717/65 (Lei da Ação Popular) para caracterizar os defeitos do ato administrativo, dentre os quais se encontra o famigerado desvio de poder. E para fecharmos com chave de ouro essa coletânea de definições, a sucinta mas esclarecedora lição de CRETELLA JÚNIOR (1978, p. 185) sobre o desvio de finalidade: “Desvio de poder é, pois, o desvio do poder discricionário. É o afastamento da finalidade do ato.”

Portanto, o desvio de finalidade, também chamado de defeito de fim (MEDAUAR), ou desvio de poder, é ato inválido, consubstanciado em conduta dissimulada de agente público que não se porta conforme a legalidade e moralidade; causa prejuízo à administração pública, pois a finalidade do ato não é alcançado.

1.2 A relação entre desvio de finalidade e ato discricionário

Também chamado de desvio de poder, o desvio de finalidade é a distorção do poder discricionário. É o afastamento da finalidade do ato. Pode ser entendido como o uso indevido que o agente faz do poder discricionário para atingir fins diversos dos que a lei determina. Desse modo, o desrespeito ao elemento fim no desvio de poder configura a sua existência. No entanto, GASPARINI (2009, p. 148), desenvolvendo excelente raciocínio, explica que tanto o ato discricionário, quanto o vinculado podem dar ensejo ao desvio de poder. Vejamos:

“Dado que o abuso de poder manifesta-se na fase executória do ato administrativo, torna-se despicienda qualquer discussão para saber se a sua ocorrência se dá entre os atos discricionários ou vinculados, ou, ainda, se em ambas as espécies pode ocorrer esse vício, uma vez que um e outro são executáveis. De fato, se tanto uma como outra dessas categorias de atos são executáveis, resta lógico que o abuso de poder pode estar presente tanto numa como noutra espécie”.

Essas diferentes formas de enxergar o desvio de finalidade, ainda que de maneira propedêutica, são importantes, pois, a dedução lógica será a principal metodologia usada, e o rigor científico será preservado na adequada escolha vocabular e na formação semântica das orações e períodos. Com efeito, a margem de liberdade do ato discricionário poderá incentivar a prática do desvio de finalidade, pois o agente público mal intencionado possui, no mínimo, duas alternativas expressas na norma de competência. Em uma ele simula a prática (o pretexto para a prática do ato), em outra ele dissimula (desvio de finalidade em si). A pretexto de praticar dissimuladamente uma das possibilidades do ato discricionário é que ocorre a maioria dos casos de desvio de finalidade.

No entanto, há entendimentos doutrinários de que não é impossível usar-se como pretexto do ato dissimulado (desvio de finalidade) um ato administrativo vinculado. Seria o caso, por exemplo, do chefe que remove servidor para longe do domicílio (família) sob o pretexto do interesse público, que efetivamente não existe, mas apenas para puni-lo (verdadeira intenção). Assim, ou o agente público – competente para escolher se pratica o ato, ou não – remove-o, ou não o remove. Caso se entenda que a decisão de não remover também está na margem de liberalidade do Chefe, estaremos diante de um ato administrativo discricionário, e não haveria nunca a possibilidade de praticar – usando como pretexto um ato vinculado – o desvio de finalidade, pois a decisão de não praticar o ato seria sempre uma segunda alternativa do agente competente, ante a possibilidade de praticá-lo (remover).

Caso não se entenda que a decisão de não remover não está na margem de liberdade, somente nesse caso se estaria diante de um desvio de finalidade por meio de simulado ato administrativo vinculado, pois, apesar de o agente ter um único ato a praticar (remover), sem porém, buscar o interesse público, mas por meros motivos pessoais, estar-se-ia contrariando o espírito da lei.

1.3 A danosidade do desvio de finalidade à administração pública

Ao particular é dado fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. Ao administrador só cabe fazer aquilo que a lei manda. É o princípio da legalidade como pressuposto ético da lei; afinal, impossível pensar em uma lei imoral, no âmbito de um Estado Democrático e de Direito. Porém, apesar de a lei ser o balizador pleno dos atos do gestor público, no ato discricionário, conforme alhures, deixa-se uma margem de liberdade à atuação decisional do administrador legitimado à praticá-lo.

A intenção da doutrina francesa, ao classificar e sistematizar o ato administrativo quanto à liberdade de ação do agente praticante, era não engessar a administração pública, pois é facilmente perceptível que o agente público não é uma máquina que age de forma robotizada e automática, até porque a lei não consegue prever todas as formas probas e éticas de agir em um determinado lugar e momento da história, para servir de roteiro ao mais legalista agente público. Ora, a intenção da doutrina era prever e possibilitar a humanização ética e moral da conduta humana, no ato de administrar a coisa pública; isto é, possibilitar a criatividade, a sensibilidade, o raciocínio, a sensatez e o bom senso do administrador, no momento em que nenhuma lei, nenhum costume administrativo, nenhum princípio geral, enfim, nenhum norte normativo se mostrasse adequado a situações novas e inusitadas, em que o administrador teria que decidir.

Infelizmente, é diante de uma situação dessas que o agente público, tomado de má-fé, ou negligentemente, pratica ato desviado de poder. Porém, sua conduta não deixa de ser inteligente, engendrada, premeditada e até dissimulada, pois, na maior parte das vezes, a exterioriza de modo a alcançar finalidade nada republicana, mas confundível com outra que ele alega dizer que era o seu fim: o interesse público. Portanto, o desvio de finalidade é a semente de toda a corrupção, de todo o assédio, de todos os crimes contra a administração pública, como são a prevaricação, o peculato, a fraude às licitações, as burlas aos concursos públicos e etc.

Caso o desvio de finalidade não ocorresse, problemas seríssimos de desconfiança contra o serviço público deixariam de existir. E sabemos que o mal exemplo, originado exatamente de quem não deveria dá-lo, pode contaminar toda uma comunidade.Certamente que o administrador público que o pratica, principalmente aquele que age com malícia (dolo), acredita que nunca será descoberto, pois não consegue perceber que uma semente (desvio de finalidade) é uma árvore (corrupção) em potencial.

Um agente público que pratica desvio de finalidade é pior que o delinquente, pois este não se propõe a dissimular seus atos. Este até planeja, preconcebe e premedita, mas tudo às escondidas. Já o agente público que pratica ato desviado de função, o faz protegido pelo aparato do Estado. O faz dentro de uma instituição pública, usando dos recursos públicos e, o que é pior, fazendo uso do poder estatal que está investido. Em tudo isso consiste a danosidade do desvio de finalidade. Como já dito, o desvio de finalidade está na raiz da corrupção ativa e passiva, dos assédios moral, estrutural[1] e sexual; e das disfunções da administração pública autorreferida.

Ocorre de forma muito discreta, e por isso é difícil de perceber sua ocorrência. Porém, pior de tudo é a maneira resignada como o cidadão, e até agentes públicos operacionais, encaram como natural referida conduta, acabando por se submeter aos caprichos do agente que abusa do poder. Aliás, quanto maior o grau hierárquico do Chefe, maior é seu grau de culpa, pois os chefes de nível tático (intermediário), que também sofrem os efeitos dos desvios de finalidade, acabam redirecionando as injustiças dos atos de desvio de finalidade, praticados pelos Chefes de nível estratégico, aos servidores de nível operacional, em verdadeiro efeito cascata.

O desvio de finalidade é tão degradante para o Estado Democrático e de Direito que, além de ser dissimulado e de difícil comprovação, gera uma ciranda dialética de injustiças na administração pública, dando azo ao aparecimento do famoso “jeitinho brasileiro”, onde o cometimento do desvio de finalidade por um agente público de determinado escalão, dentro do Órgão/Entidade, acaba forçando o(s) agente(s) público(s) de escalão e nível inferior a também cometer(em) desvios de finalidade, pois a máquina pública brasileira mantém e fomenta uma cultura de mentira e resignação.

DI PIETRO (2008, p. 229) assim discorre sobre a dificuldade probatória do desvio de poder:

“A grande dificuldade com relação ao desvio de poder é a sua comprovação, pois o agente não declara a sua verdadeira intenção; ele procura ocultá-la para produzir a enganosa impressão de que o ato é legal. Por isso mesmo, o desvio de poder comprova-se por meio de indícios; são os “sintomas” a que se refere Cretella Júnior (1977:209-210): a) a motivação insuficiente; b) a motivação contraditória; c) a irracionalidade do procedimento, acompanhada da edição do ato; d) a contradição do ato com as resultantes dos atos; e) a camuflagem dos fatos; f) a inadequação entre os motivos e os efeitos; g) o excesso de motivação.”

Muitos agentes públicos, quando percebem que as condutas desviadas de função podem ser descobertas, usam novos desvios de finalidade para impedir que suas condutas dissimuladas sejam publicizadas. Não é incomum o uso de procedimentos investigativos administrativos (sindicâncias) como forma de amedrontamento e constrangimento ao servidor que eventualmente se comprometa com o interesse público, pois até o sigilo, que é algo excepcional e deve existir somente justificado, passa a ser usado como forma de terrorismo dentro das instituições.

Licitações públicas existem, em muitos casos, apenas pró-forma, concursos públicos são burlados, auditorias (processo de conformidade documental) são deixados a segundo plano, tornando a máquina pública uma fábrica de hipocrisia. A prática demonstra que a desorganização administrativa nos níveis municipais é maior que nos níveis estaduais, que por sua vez, é maior que em nível federal, que mesmo assim, ainda é muito alta.

Os órgãos/entidades do Poder Executivo também são mais propensos aos desvios de finalidade que os do poder Legislativo, que por sua vez são mais propensos que os do Poder Judiciário e Ministério Público. Porém, apesar dessa hierarquia de desorganização, não podemos dizer que as práticas de desvio de finalidade no Judiciário e Ministério Público são irrisórias. A esse respeito, o Professor Doutor Luciano DA ROS, em trabalho científico[2] O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória, demonstra que o judiciário e o Ministério Público são os mais caros do mundo e consequentemente, elitistas e ineficientes.

Por sua vez, BARROCAL, em seu artigo MP brasileiro: elitista e o mais caro do mundo[3], bebendo na fonte de DA ROS, chega também à conclusão que o Ministério Público brasileiro é elitista e ineficiente. De fato é elitista, pois discrimina dissimuladamente os candidatos aos seus cargos, ao selecionar seus membros, por exemplo; porém seria, no nosso entender, por outro ponto de vista, caipira, cabuçu (caboclo), caiçara[4], na medida que seus membros seriam incapazes de perceber a instrumentalidade de suas funções, o que não se compatibilizaria com o alegado elitismo percebido por DA ROS.

1.3.1 O desvio de finalidade como nascedouro da corrupção

Abordar esse tópico, no momento político em que o Brasil encontra-se, parece até chover no olhado e falar do óbvio, o que todos já sabem. Ora, o desvio de finalidade no Brasil é visto como algo normal, corriqueiro; algo da cultura do povo brasileiro que, de tanta hipocrisia, cunhou expressões do tipo: “jeitinho brasileiro”, ou “malandro é malandro, e Mané é Mané!”, que não tinham, porém, uma ligação direta e originária com a corrupção!

Hoje é perceptível a ligação direta entre corrupção e desvio de finalidade. O juiz de direito em São Paulo, Marcelo SEMER, em artigo intitulado O Brasil Hoje é Um Grande Desvio de Finalidade[5], afirma que:

“Teóricos do direito administrativo poderiam muito bem caracterizar a deposição da presidenta como um desvio de finalidade: “quando o agente pratica o ato, visando fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência (art. 2º, §único, Lei 4717/65)”.

E arremata, em seguida:

“Para uns, estancar a sangria que os ameaçava; para outros, abrir a janela de oportunidades que um governo não eleito pelo voto popular podia ensejar. Ao fim das contas, peças foram mudadas, a corrupção se mostrou mais evidente, e um pequeno grande detalhe político-eleitoral marcou o Planalto: o projeto que perdeu a eleição presidencial passou a governar o país.” (grifo do autor)

Lilian MATSUURA, repórter da Revista Consultor Jurídico, em artigo intitulado Peculato e Corrupção Podem ser Crime Continuado[6], em referência a entendimento do Professor Doutor Juarez TAVARES[7], bem demonstra a relação direta entre desvio de finalidade e corrupção, verbis:

“Se na corrupção viola-se a funcionalidade do sistema, da mesma forma no peculato se desabilita a administração de poder prestar seus serviços aos cidadãos, seja pelo decréscimo patrimonial do bem público, seja pela apropriação do bem particular na posse do funcionário, seja no desvio de finalidade”, defende ele.

De fato, corrupção vem do latim corruptus, que significa quebrado em pedaços. O verbo corromper significa “tornar pútrido”. A corrupção pode ser definida como utilização do poder ou autoridade para conseguir obter vantagens e fazer uso do dinheiro público para o seu próprio interesse, de um integrante da família ou amigo. No Código Penal Brasileiro, a corrupção ativa vem prevista no art. 333, e a corrupção passiva no artigo 317.

A corrupção pode consubstanciar-se em: a) favorecer alguém prejudicando outros; b) aceitar e solicitar recursos financeiros para obter um determinado serviço público; c) retirada de multas ou em licitações favorecer determinada empresa; d) desviar verbas públicas, dinheiro destinado para um fim público e canalizado para as pessoas responsáveis pela obra; e) até mesmo desviar recursos de um condomínio.

A corrupção é presente (em maior evidência) em países não democráticos e de terceiro mundo. Essa prática infelizmente está presente nas três esferas do poder (legislativo, executivo e judiciário). O uso do cargo ou da posição para obter qualquer tipo de vantagem é denominado de tráfico de influência. É importante observarmos que um país pode ser democrático somente na letra de seu sistema jurídico-constitucional, mas a efetividade de suas normas é baixa ou baixíssima, como é o caso do Brasil. Estamos, nesses casos, diante de um país/nação que não é nem autoritário, e nem democrático, mas hipócrita, pois a hipocrisia se qualifica pela acintosa não correlação entre o discurso que embasa a relação de seus componentes (constituição e sistema jurídico) e as práticas do dia a dia.

Toda sociedade corrupta sacrifica a camada pobre, que depende puramente dos serviços públicos, mas fica difícil suprir todas as necessidades sociais (infraestrutura, saúde, educação, previdência etc.) se os recursos são divididos com a área natural de atendimento público e com os traficantes de influência (os corruptos). Quando o governo não tem transparência em sua administração é mais provável que aja ou que incentive essa prática. Não existe país com corrupção zero, embora os países ricos e democráticos tenham menos corrupção, pois sua população é mais esclarecida acerca dos seus direitos, sendo assim menos suscetível de ser enganada.

Existem organizações internacionais que têm como finalidade desenvolver pesquisas para “medir” o nível de corrupção. A partir de pesquisas, é feita uma classificação de acordo com a nota que vai de 0 a 10. Alguns dados revelam que o primeiro lugar com nota 9,7, que corresponde à alta margem de confiança, é a Finlândia; o Brasil ocupa apenas o 54° lugar com nota 3,9.

1.3.2 O desvio de finalidade como nascedouro de assédios

Os assédios podem ser moral ou sexual. Este por sua vez, configura crime no Brasil, previsto no Código Penal, art. 216-A. Aquele (o moral), não é figura penal direta no Brasil, mas pode configurar-se em improbidade administrativa (Lei n° 8.429/92). Pode ser classificado em ascendente ou descendente[8]. Nesse contexto, interessante é o trabalho científico da Professora Deuzete Ferreira BARBOSA, em artigo intitulado Assédio moral (estrutural) nas escolas públicas do município de Macapá: uma consequência espontânea da administração patrimonialista, apresentado à Faculdade Estácio de Macapá, como requisito para a obtenção de graduação em direito, publicado na Revista Âmbito Jurídico[9].

Nesse trabalho, BARBOSA defende que o assédio moral estrutural é apenas um modo diferente de enxergar o assédio moral tradicional, isto é, é o mesmo assédio moral praticado por um agente público, ainda que de maneira sistemática, mas de forma isolada, por outro agente público, geralmente superior hierárquico. A diferença está na alta disseminação das práticas de assédio que fazem a máquina pública personificar a autoria do assédio, em lugar dos agentes, meros instrumentos.

Observa a competente professora e bacharel em direito que o assédio moral estrutural é fruto da prática de condutas administrativas patrimonialista e burocráticas (disfunções), no âmbito do serviço público de educação do município de Macapá, Estado do Amapá. Defende ainda, que somente por meio de práticas gerencialistas de gestão pública se poderá combater o assédio moral estrutural ou sistêmico. Infelizmente, as constatações de BARBOSA parecem não se restringirem ao município de Macapá.

Nesses mais de 25 anos de serviço público, prestados a maior parte ao MPU, o autor possui inúmeros exemplos documentados de desvios de finalidade, praticados no âmbito do serviço público da União, em especial do MPU, que comprovam a relação direta entre o abuso de poder administrativo e o assédio moral estrutural (ou institucional, ou ainda, sistêmico). Essas conclusões chegam a ser desalentadoras, mas todo avanço, progresso e melhoria só existem se precedidos de diagnósticos, ainda que estes sejam preocupantes, pois, só se tomam providências saneadoras depois de diagnosticados os problemas.

Portanto, a grande crise institucional que hoje o Brasil vive é reflexo de velhas práticas, antiquadas, patrimonialistas e excessivamente autorreferidas, perpetradas por anos e anos no seio do serviço público brasileiro. E o desvio de finalidade é, sem dúvida, uma das raízes desses males.

1.3.3 O desvio de finalidade como nascedouro de disfunções da administração pública burocrática e autorreferida

Conforme dito alhures, a burocracia não deixa de ser condizente com o princípio do formalismo do direito administrativo. Porém, em excesso, acaba por desvirtuar os princípios republicanos de uma administração pública moderna, transparente, econômica e proba. Tanto a burocracia excessiva, quanto o patrimonialismo, são corolários de desvios de finalidade. Para ser mais preciso, desvio de finalidade, assédio moral, patrimonialismo, corrupção e burocracia excessiva são conceitos ligados por uma relação potencial de causa e efeito.

Vejam o excerto da atualíssima obra O Constitucionalismo Brasileiro Tardio, de SILVA NETO (2016, p. 66-67) a corroborar nossa tese:

“O homem cordial infelizmente não é apenas o homem afável, cortês, hospitaleiro. A ideia de cordialidade assume contornos altamente pejorativos para anunciar a terrível consolidação da chaga nacional de não divisar o público e o privado. Como efeito jurídico disso há os graves e recorrentes casos de corrupção mediante os quais se pinta, com as cores vivas da realidade, o triste cenário: o exercício de cargo público no Brasil passa a se constituir na forma mais eficaz de enriquecer fácil e rapidamente. E sendo certo que não subsiste corrupção sem corruptor, os agentes econômicos privados andam de braços dados com os corruptos do serviço público em direção ao altar da prevaricação e da rapinagem praticada contra o erário. Porém, extrai-se do sistema constitucional direito fundamental cujos contornos ainda não foram suficientemente desenvolvidos pelo sistema da ciência do direito no Brasil: o direito fundamental ao governo honesto.”

Infelizmente, o homem cordial vive, e vive a carregar da vida privada o excesso e pessoalidade para dentro do serviço público, dano azo à famigerada prática do desvio de finalidade. Mas, a corrupção pode ser tão engendrada, a ponto de mascarar de forma muito bem dissimulada essa perversa prática, que chega a ser aceita pela sociedade, ou porque está anestesiada mesmo, ou porque não tem consciência de sua ocorrência. É o que acontece com o recebimento de auxílio moradia pelos membros do Ministério Público[10] e do Judiciário brasileiros[11].

Sob os fundamentos de diversos pretextos relacionados nos considerandos da Resolução nº 117, de 7 de setembro de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, e da Resolução nº 199, de mesma data, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, todos os membros do Ministério Público brasileiro, bem como os magistrados do Brasil passaram a receber a título indenizatório o valor de R$ 4.377,00, sem respeitar o teto constitucional de remuneração máxima dos agentes públicos no Brasil, previsto no inciso XI do art. 37 da CRFB/88.

O curioso é que os servidores dessa entidade/poder não tem – e não deveriam mesmo – o direito a perceber referido auxílio, sob o fundamento de que, ontologicamente, seriam diferentes dos membros do MP e do Poder Judiciário brasileiro. Aliás, mais um fundamento a supedanear a prática de desvios de finalidade no seio dessas entidades. É que a diferença ontológica entre servidores e membros das respectivas entidades é jurídica, ou seja, é normato-interpretativa, e não oriunda da ciência do ser (metafísica), como são as verdadeiras origens ontológicas dos seres.

Ademais e finalmente, assim como no Estado de Direito, em que as normas eram legais, mas não necessariamente democráticas, a instituição do auxílio moradia a membros do MP e do judiciário brasileiro se mostra nada republicano, pois além de descabido e não razoável, está dando ensejo a que membros de outros tribunais (Tribunais de Contas, por exemplo) passem a usar dos mesmos artifícios (legislação em causa própria) para aumentar os próprios salários.

2 A documentalidade dos atos administrativos

A prova (factum probans), na acepção de comprovação da existência de um outro fato (factum probandum), é o elemento de prova. O factum prabandum é, pois, sinônimo de objeto da prova. Vejamos o que afirma DALLAGNOL (2015, p. 17):

“A fixação dos conceitos de factum probans (elemento de prova) e de factum probandum (objeto de prova) é fundamental para prosseguirmos. De forma provisória e em resumo, podemos afirmar que factum probans é o fato que é utilizado para provar algo, enquanto o factum probandum é esse algo que é demonstrado pelo factum probans. No parágrafo acima, a certidão de casamento, o testemunho, a foto e o laudo constituem exemplos de factum probans, enquanto o casamento em si, a fuga de Caim, o dano e a morte constituem exemplos de factum probandum. Factum probans e factum probandum se conectam na medida em que o primeiro prova o segundo”.

Em última análise, a documentação de um ato administrativo é a criação de uma prova previamente elaborada, pois diretamente, serve para retratar um ato administrativo e, indiretamente, para eventualmente provar um desvio de finalidade. Os atos administrativos são condutas humanas, praticadas por agentes públicos, investidos em cargo ou função pública, para alcançar um fim público com resultado prático observável no mundo fenomênico. Os documentos, que podem ser públicos ou privados, são retratos desses atos administrativos. Perduram no tempo, como uma fotografia que registra um momento de nossas vidas.

Um documento pode ser falso por sua materialidade e por sua ideologia. Um documento materialmente falso não é, em verdade, documento, pois foi “montado”, isto é, teve seu registro (escrita, imagem ou áudio) criado sem a correspondente prática do ato administrativo válido. Já o documento ideologicamente falso não foi “montado”, isto é, corresponde fielmente à prática de um ato administrativo – ainda que inválido – porém, desviado de finalidade ou praticado por agente público incompetente.

No presente estudo, o que nos interessa de fato, são documentos escritos, oriundos de atos administrativos imediatamente documentados, pois são esses atos, quando não meramente burocráticos, que servem para prevenir, provar e combater os desvios de finalidade.

2.1 O princípio da publicidade dos atos administrativos

O serviço público é prestado em favor da coletividade, e como tal, difere de um serviço prestado pela iniciativa privada. Ainda quando prestados serviços e/ou vendidos produtos por empresas públicas e sociedades de economia mista (administração indireta) – quando a administração compete no mercado – o princípio da publicidade dos atos da administração deve ser prestigiado e observado. Ele é um consectário lógico direto do princípio da impessoalidade, pois, para que a pessoa do agente público não seja beneficiado com a promoção pessoal de seu nome, é necessário garantir que qualquer cidadão possa ter acesso às informações, aos procedimentos, aos documentos, aos projetos e aos gastos dos órgãos públicos.

Nesse contexto, a produção de documentos, em especial os escritos, são retratos dos atos administrativos, mormente se documentados imediatamente após a sua prática, torna-se algo salutar e esperado por toda a sociedade. Retratar o modo de agir da administração pública significa prevenir e evitar que condutas dissimuladas sejam perpetradas por agentes públicos maliciosos ou negligentes. Os documentos são públicos, ainda que sigilosos, mas a sua sigilosidade é característica excepcional e passageira, mantendo-se eventual sigilo apenas enquanto perdurar o interesse público. O sigilo não é decisão arbitrária da autoridade competente que o determina – apesar de discricionária – e deve ser fundamentada.

Com o advento da Lei nº 12.527/2011 (lei de acesso à informação), o princípio da publicidade ganhou ainda mais efetividade, fortalecendo as ouvidorias públicas, os sites institucionais e a informação em tempo real de entrada (impostômetros) e saída de recursos públicos (gastos). Portanto, quanto mais informação escrita ao alcance do cidadão, maior será a possibilidade de prevenir e combater atos de desvio de finalidade.

2.2 O princípio do formalismo moderado dos atos administrativos

O princípio do formalismo administrativo está diretamente relacionado ao rito do procedimento administrativo, considerado um formalismo moderado, previsto na Lei Federal n.º 9.784/99 (artigo 2º, parágrafo único, incisos VIII e IX, e artigo 22, parágrafos 2º e 3º). De fato, o formalismo não é sinônimo de burocracia excessiva, pois, conforme já mencionado ao norte, enquanto ao particular é permitido fazer tudo o que a lei não proíbe, ao agente público só é permitido fazer o que a lei manda.

No entanto, o formalismo não é um fim em si mesmo; não é algo sacramental, mas sim, instrumental. Registrar os atos administrativos serve para prestigiar princípios como o da transparência e da publicidade. Com efeito, ainda que não haja um procedimento formalmente autuado, todo documento público que requer uma providência/resposta da administração precisa tramitar, até ser decidido pelo agente público competente, dando uma resposta àquela demanda.

Portanto, ao lado do princípio da publicidade, o princípio do formalismo torna a administração pública menos propensa a cometer abusos e desvios de finalidade. Logicamente, atos de simples cadência processual (juntadas, envio de autos à autoridade, retiradas de cópias e expedição de ofícios rotineiros) não necessitam de tanto – ou talvez nenhum – formalismo.

2.2.1 O procedimento de avaliação de desempenho de servidor e o feedback do avaliado

A avaliação de desempenho de servidores públicos, se bem concebida e executada, poderá constituir-se em poderoso procedimento a favor da modernização da administração pública brasileira, no sentido de que servirá de constante e periódico diagnóstico à conduta profissional dos servidores. No MPU, por exemplo, todos os servidores, estáveis ou não, são avaliados periodicamente. A avaliação de desempenho dos servidores está regulamentada pela portaria PGR nº 298/2003, de 08 de maio de 2003. Seu objetivo é:

“… aferir a eficiência dos servidores das Carreiras de Analista e Técnico do Ministério Público da União no desempenho de suas atribuições, possibilitando a implementação de ações gerenciais voltadas para o aperfeiçoamento profissional, o crescimento na carreira, o desenvolvimento da organização e a melhoria do serviço”.

Essa portaria define que a avaliação também será utilizada para progressão ou promoção, conforme o caso. O servidor poderá entrar com recurso, caso não concorde com o resultado da avaliação. Para isso, deverá expressamente assinar com ressalva o resultado. Depois de tomar ciência, o avaliado terá 10 dias para recorrer, que deverá ser motivada e juntada documentação que entender pertinente.

Interessante, por seu turno, é a forma da avaliação de desempenho aplicada aos servidores públicos nos Estados Unidos da América (EUA). RODRIGUES (1996, p.10) assevera que:

“O formulário de avaliação do Departamento do Estado não se limita a uma apreciação objetiva do desempenho do funcionário. A avaliação meramente objetiva é, naturalmente, suscetível a quase todas as formas de erro, podendo, inclusive, estimular a falta de empenho do avaliador que poderia facilmente burlar o critério em sua avaliação. Para reduzir a falta de critério dos supervisores, o formulário apresenta uma dimensão discursiva. Nela, o avaliador terá que justificar sua avaliação, discutindo os pontos altos e falhos do desempenho do funcionário ao longo do ano, com exemplos específicos da atuação do servidor. Trata-se de um registro de incidentes reais de trabalho ou de atuações exemplares do funcionário. Nas palavras de Graham Jr. e Hays, “como essa técnica de avaliação enfoca eventos específicos, ela tem um nível de validade muito mais alto do que a maioria das outras abordagens”. (grifamos)

Certamente que com o tipo de avaliação de desempenho aplicada aos servidores públicos americanos, os desvios de finalidade no Brasil diminuiriam muito, quiçá desapareceriam! Vale lembrar que os servidores americanos também podem ter retribuição em pecúnia, a depender de seus resultados obtidos, verbis:

“O resultado das avaliações de desempenho formam a base da decisão sobre a concessão de prêmios e outros estímulos à boa performance. O Programa de Prêmios de Incentivo do Governo Federal (incentive awards) foi bastante ampliado com a lei de reforma do Serviço Público de 1978, passando a incluir prêmios em dinheiro.”

No Brasil – e no MPU em especial – as retribuições são dadas com base na confiança dos chefes, que por vezes, é meramente subjetiva e serve para premiar servidores que não raro se quedam aos caprichos pessoais, e não institucionais, de chefes.

2.3 Classificações dos atos administrativos

A classificação de institutos jurídicos, como são os atos administrativos, é tarefa eminentemente instrumental, ou seja, visam sempre a fundamentação de teorias e doutrinas capazes de explicar e justificar leis, regras e princípios normatizadores do direito administrativo. É nesse trilhar que sistematizou-se a seguinte classificação dos atos administrativos.

2.3.1 Atos administrativos quanto à possibilidade de documentação

Quanto à possibilidade de documentação os atos administrativos podem ser documentáveis ou não documentáveis:

a) Atos Administrativos documentáveis – faticamente todos os atos administrativos são documentáveis, basta querer documentá-los. Ideologicamente, porém, somente os atos administrativos cujas consequências de sua prática – ou não – sejam essenciais é que devem ser documentados. Atos de somenos importância não seriam documentáveis ideologicamente falando. Exemplo: Feche a porta para começar a reunião reservada. À priori, não há necessidade de documentar referido ato (ordem mandando fechar a porta), mas nada impede que referida ordem seja mencionada na ata da reunião, principalmente se o ato de fechar a porta for histórico, ou, se conditio sine qua non para o início da reunião.

b) Atos administrativos não documentáveis – faticamente não existem atos não documentáveis. Ideologicamente, alguns não o são. Exemplo: traga água para o cidadão que está passando mal. A ordem de trazer água para o cidadão que passa mal em um órgão público precisa de resposta pelo subordinado, pois caso o cidadão não seja atendido, poderá morrer à míngua. Porém, ideologicamente não há necessidade de documentá-lo.

2.3.2 Atos administrativos quanto ao instrumento de documentação

Os atos administrativos podem ser classificados quanto ao instrumento de documentação, em atos administrativos escrituráveis, atos administrativos faláveis (verbalizáveis), atos administrativos gesticuláveis e atos administrativos graváveis.

O ato administrativo em si, é uma conduta do agente público, geralmente uma ordem. A sua forma de retratação (expressão) é que é caracterizada pela possibilidade de escrever, falar, gesticular e etc. Vejamos:

a) atos administrativos escrituráveis – são atos que podem ser retratados por escrito. Podem ser escrituráveis diretamente no papel, ou imprimíveis a posteriori (digitados). Com o advento da telemática esses atos podem ficar escritos virtualmente, para se economizar papel e contribuir com a preservação do meio ambiente. Um ato administrativo pode ser primeiro retratado em áudio e, só posteriormente, escrito (Exemplo: gravação do ato).

b) atos administrativos faláveis (ou verbalizáveis) – geralmente são atos cujas suas consequências são pouco importantes, se praticados, ou não. São mais que instrumentais, são instrumentalíssimos, pois uma eventual inobservância pelo subordinado não caracteriza, de imediato, uma indisciplina. Exemplo: Faça uma ligação, por favor! Passe um e-mail! Porém, existe um ato administrativo verbalizável que não é de somenos importância, sendo instrumental, e não instrumentalíssimo. É o silvo do guarda de trânsito para o infrator de trânsito.

c) atos administrativos gesticuláveis – são atos proferidos por meio de gestos. Assim como os atos verbalizáveis, em regra – exceto também o exemplo do guarda de trânsito – são instrumentalíssimos, ou seja, sua eventual desobediência não configura, por si só, uma indisciplina. Exemplo: fazer silêncio, com o dedo indicador na boca.

d) atos administrativos graváveis – São atos administrativos instrumentais, assim como os escrituráveis. Podem servir de prova de (i)legalidades. Apesar de serem atos de alta importância para o sistema jurídico-administrativo, a sua retratação em gravações não é tão manuseável e prática quanto os atos escrituráveis, pois as gravações têm o inconveniente de, ao necessitar-se reproduzi-la, poderem ser ouvidas por pessoas que estejam por perto; diferentemente dos atos administrativos escrituráveis, que podem ser lidos sem emissão de sons. Os atos administrativos graváveis podem ser providos de áudio, de imagem ou de ambos.

2.3.3 Atos administrativos quanto ao momento de sua documentação.

Os atos administrativos são condutas humanas que podem ser documentados (retratados). A depender do momento em que o documento é produzido os atos administrativos podem ser:

a) Atos administrativos imediatamente documentados – logo depois de sua prática, são documentados, ou por escrito (impressão, manuscrição ou digitação), ou por gravação (áudio ou vídeo).

b) atos administrativos posteriormente documentados – demoram um pouco para serem documentados. O motivo para serem documentados só posteriormente pode ser o poder discricionário do agente, normas impositivas da administração pública ou necessidade fática do ato (o agente de trânsito preenche o auto de infração somente bem depois de aplicar a multa). São os atos mais passíveis do cometimento de desvios de finalidade, pois o agente público malicioso poderá desvirtuar o ato praticado por meio da documentação de conteúdo diverso do ato efetivamente praticado, pois dar-se-á tempo à fraqueza humana para isso. A prática administrativa demonstra esse fenômeno.

c) atos administrativos sucessivamente documentados – são atos documentados primeiro de uma forma e, depois, de outra. Exemplo: gravação de uma audiência que, depois, será escrita em sistema de computador e, eventualmente, impresso. A taquigrafia é exemplo desse tipo de ato administrativo. Esse tipo de ato administrativo também é mais propenso a ser objeto de desvio de finalidade, vez que o tempo decorrido entre a primeira documentação e a segunda pode dar ensejo a simulações e desvirtuamentos.

De todo o exposto, podemos afirmar que o tipo de ato administrativo que, por excelência, é prevenidor e inibidos do desvio de finalidade está retratado pela combinação dos itens 2.3.2 a) (atos administrativos escrituráveis ) e 2.3.3 a), ou seja, um ato administrativo imediatamente escrito.

2.4 Os limites entre a documentação escrita e a burocracia

O documento escrito, criado concomitantemente ao ato administrativo é a melhor forma de se evitar que interpretações errôneas, maliciosas ou não, tornem eventual desvio de finalidade do ato uma conduta corriqueira no âmbito do serviço público. Ocorre que o excesso de burocracia, que se coaduna mais com uma administração pública anacrônica, tem no excesso de documentos escritos, um de seus mais fidedignos retratos.

Porém, os documentos escritos em concomitância com a prática do ato estão cada vez mais fáceis e rápidos de serem produzidos, com o advento da informática, da internet, das impressoras, dos escâneres e dos e-mails. Os chamados documentos oficiais (ofícios, memorandos, atas e etc), objetos da redação oficial, perderam muito de suas sacralidades, pois agora, com as mensagens eletrônicas de e-mail, os excessos de formalismos documentais se enfraqueceram, sem que a essência (formalismo moderado) tenha sido afetado.

Ordens e comunicados podem ser facilmente emitidos com a rápida produção de um texto e – com mais um simples click – repassados a um ou vários destinatários. É importante solicitar que o destinatário ratifique (acuse) o recebimento do e-mail, ainda que, no caso de uma ordem, esta possa ser cumprida posteriormente. É certo que, tanto no passado, quanto agora, existem agentes públicos que produzem documentos desnecessários, ou seja, documentos que não correspondem a nenhum ato administrativo relevante.

São práticas passadas de geração em geração, no âmbito do serviço público, sem, no entanto, se perquirir, qual é a função da produção daquele documento. Em regra, quando isso ocorre, não há feedbacks entre setores; as funções e atividades públicas são estanque, e os servidores envolvidos nessas tarefas não têm plena consciência de suas funções no serviço público; não se capacitam, e as regras de direito administrativo e de gestão por competência, gestão por processos e gestão de recursos humanos não são compreendidas e fomentadas.

O grau de amadorismo no serviço público – que não sabe a exata medida da produção de documentos – é muito alto. Os processo, tarefas e atividades são feitos de maneira totalmente empírica, sem conhecimentos suficientes sobre os principais conceitos e princípios administrativos que regem a máquina pública. Nesse tipo de administração, o “carimbaço” de um personagem de um programa de humor televisivo é uma anedota presente. Todo ato administrativo é sacramental, e pode passar a ser vendido (fraude e corrupção) como serviço público. Cria-se a dificuldade para se vender a facilidade, como dizem por aí.

A documentação escrita dos atos administrativos é uma faca de dois gumes. Pode servir para evitar que interpretações errôneas dos atos documentados posteriormente, falas e gestos sejam desvirtuados e dissimulados, como visto alhures, por meio de desvios de finalidade, ou podem servir para aumentar ainda mais a burocracia do serviço público.

Nesse contexto, de nada adianta normatizar normas, no intuito de diminuir a burocracia estatal e, ao mesmo tempo, prevenir a prática de desvios de finalidade. Ao ser humano, assim como ao agente público, dizem que é inerente a tendência de abusar do poder que lhe é outorgado. E a tarefa de regulamentar de forma detalhada o modo de agir dos agentes públicos pode levar ao enfado, gerando um sentimento de insensibilidade, principalmente nos agentes de nível operacional.

De fato, o exemplo de conduta, partindo dos agentes públicos de nível estratégico (ou institucional, como são os membros do MP e do Poder Judiciário) é o vetor a disseminar uma administração pública moderna. Aos agentes públicos de nível operacional, o uso adequado, racional e não burocrático da escrituração dos atos administrativos, de preferência imediatamente após a prática do ato, bem como a exigência para que seus superiores o façam, é maneira eficiente para, se não acabar, diminuir ao máximo as práticas de atos desviados de finalidade.

Quanto à conduta dos agentes públicos, sejam de nível estratégico, sejam de nível tático, sejam de nível operacional, a qualificação pautada em princípios, mais que em regras, é a forma mais eficaz de conscientizar sobre os malefícios dos desvios de finalidade. Entender o espírito do serviço público é a forma de se alcançar a liberdade que a verdade do ato administrativo legítimo possui.

3 A documentação escrita dos atos administrativos como forma de prevenir o desvio de finalidade

O mundo jurídico se diferencia dos demais ramos do conhecimento humano por essa vocação de ser explicável pelas relações de causa e efeito naturais, porém mescladas às relações psicológicas, onde as vontades humanas, afloráveis por meio de condutas, são objeto de elucidação, explicação e, mais complexo ainda, regulação democrática e não randômica.

3.1 A subjetividade nata do desvio de finalidade

No mundo do ser, as relações de causa e efeito são comprovadas de modo mais mecânico, por experimentação em laboratórios ou observações repetidas de fenômenos investigados. Já no mundo do dever-ser, como são as relações jurídico-administrativas entre servidores públicos e entre esses e o cidadão/cliente, as comprovações de causa e efeito são comprováveis de maneira bem mais diferente, pois envolvem o conceito do livre arbítrio, da vontade, do dolo e da persuasão, isto é, da psiqué humanas.

Fácil é perceber que um servidor público, flagrado desviando dinheiro público, do qual mantinha a guarda em razão do cargo, cometeu, além de um ato imoral, um ilícito. Porém, não tão fácil assim, é concluir que um procurador da república, por exemplo, usou o poder conferido por lei e pela Constituição para assediar servidores. O mesmo se diga do colegiado de membros do MPF que decida criar auxílio moradia, sem efetiva necessidade, para todos os seus membros: não é fácil comprovar.

Nesse aspecto, excelente são os ensinamentos de VALENTE (2009, p. 34) a corroborar, verbis:

“Em acordo com a doutrina, a comprovação do desvio de poder não se demonstra fácil, pois o ato praticado apresenta-se, em regra, como lícito em sua finalidade, traduzindo um pretenso interesse público, mas, na verdade, veicula regra desviada desse interesse.

Situação que melhor exemplifica a dissimulação do ato desviado de finalidade é a da desapropriação de imóveis. Nessa circunstância, é possível termos ato desapropriante, travestido de interesse social, desviado da regra de competência conferida ao agente público, para atingir interesses outros que não os públicos, como uma retaliação política ou uma vingança pessoal. Entretanto, como a referida desapropriação exemplificativa atinge um conjunto de imóveis, a comprovação do desvio de finalidade, que se dirigia a um único endereço, demonstra-se difícil de ser caracterizada de forma evidente.”

Ora, as intenções da administração pública são as intenções de seus agentes investidos em determinada função pública; e nesse trilhar, também são subjetivas, como é a intenção na prática de um eventual desvio de finalidade. O agente público que pratica desvio de finalidade, e o faz de propósito, com dolo, com vontade lúcida, tem a seu favor a dificuldade de materializar sua malquerença, que não se coaduna com o regime jurídico-administrativo brasileiro.

No entanto, existem formas de se majorar a percepção e captar as intenções das pessoas. Logicamente que só o interesse público é capaz de justificar o enveredamento da ciência jurídica pelo caminho das recônditas animosidades do agente público. E, nesse caminhar, a comprovação do desvio de finalidade é matéria da maior importância para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

O desvio de finalidade é conduta que se coaduna muito bem com a ato administrativo discricionário, mais que com o ato vinculado aos comandos jurídicos. No entanto, é tão maléfico o desvio de finalidade advindo de ato discricionário, quanto do ato vinculado. Nesse aspecto, a preocupação científica não deve mudar.

BANDEIRA DE MELLO (2008, p. 964) afirma que, para caracterizar a existência do desvio de poder, não é imprescindível que exista uma verdadeira antinomia, uma antítese, entre a finalidade da lei e a do ato praticado, bastando o singelo desacordo entre ambos. Entretanto, nem sempre esse desacordo apresenta-se claramente para caracterização inquestionável do desvio de poder, como, por exemplo, na situação das desapropriações.

Da mesma feita é o tipo de desvio de finalidade que não obstante configurado, também atingiu paralelamente o fim dissimulado: o interesse público. Para a ciência jurídica pouco importa o atingimento do fim público, se a malquerência do agente também se consumou. A má intenção maculou o eventual atingimento do fim público, pois este serve apenas para ludibriar a opinião pública. Essa também é a balizada opinião de CARVALHO FILHO (2014, p. 121), verbis:

“Segundo alguns especialistas, o desvio de finalidade seria um vício objetivo, consistindo no distanciamento entre o exercício da competência e a finalidade legal, e, por tal razão, irrelevante se revelaria a intenção do agente. Não endossamos esse pensamento. Na verdade, o fato em si de estar a conduta apartada do fim legal não retrata necessariamente o desvio de finalidade, vez que até por erro ou ineficiência pode o agente cometer ilegalidade. O desvio pressupõe o ânimus, vale dizer, a intenção deliberada de ofender o objetivo de interesse público que lhe deve nortear o comportamento. Sem esse elemento subjetivo, haverá ilegalidade, mas não propriamente desvio de finalidade.”  

3.2 O benefício preventivo de se instar a externalização do desvio de finalidade

Os malefícios do desvio de finalidade somente podem ser minorados, ou mesmo dirimidos, se efetivamente correr sua externalização. O cuidado diário dos agentes públicos, principalmente os de nível operacional – que são os mais desfavorecidos, pois têm pouco poder para impor a verdade -, passa pela perspicácia e prática, antevendo o que um mau gestor público, usando do poder hierárquico, ou até institucional (caso do MP, do Judiciário e das Casas Legislativas), pode fazer para mascarar as suas intenções.

Nesse diapasão, a documentação dos atos administrativos, de maneira a retratar com fidedignidade as intenções do agente público que o lavrou, é atitude digna de cultivo e de estudo aprofundado. E não é qualquer forma de documentação, mas a forma mais econômica, mais eficiente, menos volumosa e mais acessível de conhecer e reconhecer a matéria fática (escrita e leitura de texto).

Enquanto as gravações de mídias (áudio e/ou vídeos) demandam o uso de aparelhos como gravadores, leitoras óticas e etc, o uso de documentos escritos requerem apenas os conhecimento cognitivo de leitura, escrita gramatical e interpretação de textos.

Conforme já discorrido: hoje, com o advento e disseminação do correio eletrônico (e-mail institucional), o registro escrito, imediato, objetivo e econômico dos atos administrativos tornou possível manter uma cultura de alerta contra os abusos de autoridade, sem no entanto, parecer paranoia do servidor que cultiva essa conduta, pois, de fato, assim agindo estará apenas cumprindo o que o sistema jurídico-administrativo brasileiro ordena, ou seja, observar e fomentar os princípios do formalismo moderado, da publicidade, da economicidade e da eficiência, sem correr o risco de alimentar burocracias desnecessárias, que tanto atrasam o já combalido serviço público brasileiro.

No âmbito do Ministério Público Federal existe ferramenta chamada MPF drive, que é um repositório de pastas de rede para todos os setores do Ministério Público Federal. Essas pastas foram criadas para facilitar o uso colaborativo de todos os integrantes do MPF. Membros, servidores e estagiários poderão acessar as pastas da sua unidade de lotação (e as pastas lotadas hierarquicamente abaixo de sua unidade). Cada pasta tem 2 GB disponíveis. As subpastas e arquivos adicionados, além da própria pasta, podem ser facilmente compartilhadas com outros integrantes da instituição por meio da interface de compartilhamento. Isso significa, segundo o MPF, um compartilhamento mais fácil e ágil no seu âmbito, que dispensa chamados ou memorandos para ajustes de permissão de acesso.

Os usuários podem acessá-lo no navegador (mpfdrive.mpf.mp.br), nos clientes desktop e até nos aplicativos para dispositivos móveis. O sistema ainda oferece outros recursos, como a possibilidade de realizar comentários e de gerar links para compartilhar os arquivos das pastas de rede com o público externo, fora do MPF.

Não obstante o inegável auxílio do MPF drive para aumentar a documentação e a transparência dos atos administrativos praticados, bem como contribuir para um ambiente digital colaborativo e mais seguro, o uso de tal ferramenta, além de pouco divulgado aos servidores, é apenas facultativo e requer assinatura digital autorizada por membro.

3.3 O documento escrito e sua natural aptidão para inibir o desvio de finalidade

O finado Deputado Federal Cacique Mário Juruna[12], em pleno exercício do mandato de Deputado Federal pelo Estado do Mato Grosso, costumava andar com um gravador de áudios para gravar, segundo ele, as falsas promessas do Governo da época (1982), sobre a devolução, aos índios de sua tribo Xavantes, as terra originais. Sua arma, segundo ele próprio, no mundo dos brancos era o gravador. “Homem branco mente muito”, repetia sempre Juruna, eleito deputado federal pelo PDT em 1982. Até o bordão “cacique grava tudo”, atribuído a si, se tornou conhecido no Brasil por programas de humor televisivo.

Certamente que Juruna sabia, ainda que de forma empírica, os males que fazia para a vida pública, as partes envolvidas em determinado acordo (promessas) avençados, não os cumprir. Regredindo um pouco mais, sabemos que a prática da verdade e/ou da mentira pelo homem sempre foi objeto de preocupações, seja na seara filosófica, seja na seara religiosa, seja na seara pública ou privada; tanto que a bíblia relata a conhecida história de Adão e Eva, que foram expulsos do paraíso por cometerem o pecado original: a mentira.

Sabemos que na seara das relações jurídico-privadas, cabe ao homem fazer tudo o que a lei não proíbe. Já na seara pública, ao gestor só cabe fazer aquilo que a lei ordena. É o princípio da legalidade em suas duas vertentes: uma mais leve (seara privada), outra mais exigente (seara pública). Nesse diapasão, a prática de ato administrativo é expressão do agente público, que precisa agir conforme à lei, à moral, aos bons costumes, e aos princípios da administração pública, previstos na CRFB/88. O sistema jurídico-administrativo é a consubstanciação do acordo de cavalheiros que rege as relações entre Estado-Administração e cidadão, e entre aquele e seus agentes.

O desvio de finalidade é, antes de mais nada, uma mentira. É um engodo. É a vontade – ou pelo menos, a negligência do agente público competente que pratica o ato inválido – de enganar os administrados, os demais agentes públicos envolvidos, e a própria administração pública, enquanto personalidade pública fictícia. É certo que a mentira tem pernas curtas, ou seja, um desvio de finalidade pode ser descoberto, mais cedo, ou mais tarde (se não tiver prescrito o direito de punir do Estado); mas não basta apenas saber-se da existência do desvio. Para se punir o agente que abusa do poder público, é necessário ter provas cabais. E é nesse contexto que a prova documental, produzida logo depois do ato, se mostra a mais apta a vincular inconteste o agente público que o pratica, com sua conduta (liame subjetivo).

Enquanto: a) testemunhas mentem, esquecem fatos, morrem, adoecem e/ou se deixam subornar b) áudios e vídeos precisam de aparatos relativamente caros para reproduzir as vontades humanas e tentar retratar suas reais intenções; c) exige certo esforço e incômodo portar um aparelho para gravar o ato no momento que está sendo praticado; d) são deselegantes e invasivos demais na vida dos agentes envolvidos, e, reproduzem as imagens e vozes humanas, porém cheias demais de agudos, graves e trejeitos, ou seja, são pessoais demais, e) os documentos escritos e válidos são imparciais, insubornáveis, baratos, leves, discretos, objetivos e portáveis.

Os atos administrativos podem ser ordens, informações, declarações e enunciações, praticáveis encadeados, formando processos tendentes a um fim público. Nesse caminho dialético, dinâmico e complexo, os agentes envolvidos não tem muita chance de analisar, reavaliar e retratar com fidedignidade suas decisões. Acabam por serem arrastados pelo procedimento que corre contra o tempo.

Isso tudo, sem a documentalidade escrita dos atos administrativo, é um terreno fértil para o agente público mal intencionado, pois seus desvios e abusos vão se misturando aos atos de seus parceiros, chegando-se a fins não queridos pela lei e pela Constituição e dissimulado de ato legítimo.

Só o documento escrito (como já dito, de preferência não impresso em folha de papel[13]) tem o poder, em alto grau, de tornar petrificado no tempo o retrato de um ato administrativo. É um arquivo de fácil e fidedigno acesso da realidade e da verdade. Diferentemente da eventual prova advinda de testemunhas, que, não raro, carecem da capacidade de expressar e bem retratar a realidade, bem como podem ficar ainda, a mercê de falhas de interpretações humanas, administrativas ou judiciais. Ou seja, enquanto os escritos, mormente os imediatamente produzidos, até sua interpretação possuem menos subjetividades intermediárias, as provas testemunhais, os vídeos, os áudios, as ordens faladas e gesticuladas são extremamente passíveis de desvirtuamentos interpretacionais, terreno fértil para o agente público dado à prática do desvio de finalidade.

Palavra?!, o vento leva! Mas não só leva! Pode trazê-la de volta. Ou melhor: pode trazer outra, apenas parecida – mas com significado totalmente diferente -, em seu lugar. A outra palavra – essa que nunca foi, de fato, dita, mas que, ou por pouca memória, ou por malícia, ou por temperamento humano – acaba por fazer do vento um mentiroso, ou um injusto, que leva a verdade para o esquecimento, e faz o agente público, um co-mentiroso, com seu desvio de finalidade, triunfar no seio da administração pública. Eis a importância do perder-se um pouquinho mais de tempo escrevendo na fonte o retrato do ato administrativo válido e eficaz.

Conclusão

O presente trabalho trata, sob o prisma da intenção dissimulada do agente público, do desvio de finalidade. Não é uma tarefa das mais fáceis, pois visa encontrar manifestações registráveis das relações de causa e efeito entre as intenções e vontades (psiquê) do agente público, propenso ao desvio e finalidade, e o ato administrativo simulado.

Para isso, no entanto, além da apropriação de conhecimentos já consolidados por renomados publicistas, como as definições de ato administrativo, ato discricionário, administração pública, legitimidade, documento público, boa-fé e etc., nos empenhamos em sistematizar novas classificações de ato administrativo. Como bem dissemos, os critérios de classificação não são um fim em si mesmo, mas são instrumentais, pois as tarefas de estudar e sistematizar são de suma importância para reconhecermos no documento escrito, o retrato maior da prevenção do desvio de finalidade.

E assim o fizemos, classificamos os atos administrativos: 1) quanto à possibilidade de documentação em – a) Atos Administrativos documentáveis e, b) Atos administrativos não documentáveis; 2) quanto ao instrumento de documentação – a) atos administrativos escrituráveis; b) atos administrativos faláveis (ou verbalizáveis); c) atos administrativos gesticuláveis e, d) atos administrativos graváveis; 3) quanto ao momento de sua documentação escrita – a) Atos administrativos imediatamente documentados; b) atos administrativos posteriormente documentados e, c) atos administrativos sucessivamente documentados .

Concluímos que o tipo de ato administrativo que, por excelência, é inibidor e prevenidor do desvio de finalidade é retratado pela combinação dos itens 2.3.2.a) e 2.3.3.b), ou seja, um ato administrativo imediatamente escrito. Vimos ainda que a danosidade advinda da prática do desvio de finalidade à administração pública é alta, dando azo ao surgimento da corrupção, assédios (estrutural, moral e sexual) e disfunções da burocracia administrativa, quando não o ressurgimento do anacrônico patrimonialismo.

Os princípios da publicidade e do formalismo temperado (ou moderado) são corolários e conditio sine qua non a demonstrar a importância e o cuidado ao se registrar a prática dos atos administrativos. Com efeito, ainda que não tramite em determinado órgão público um procedimento formal (autos), ainda assim há que se respeitar o princípio do formalismo (Lei nº 9.784/99). Relatamos que a produção de documentos escritos, em concomitância com a prática de atos estão cada vez mais fáceis de serem feitos, com o advento da informática, da internet, das impressoras e dos escâneres. Nesse trilhar, os chamados documentos oficiais (ofícios, memorandos, atas, boletins e etc), objetos da redação oficial, perderam muito de suas sacralidades, pois agora, com as mensagens eletrônicas de e-mail e aplicativos criados especificamente gerenciar documentos e procedimentos, os excessos de formalismos documentais se enfraqueceram.

Ora, as intenções da administração pública são as intenções de seus agentes, investidos em determinada função pública; e, nesse trilhar, também são subjetivas, como é a intenção de um eventual desvio de finalidade. O agente público que pratica desvio de finalidade, e o faz de propósito (com dolo), com vontade e lucidez, tem a seu favor a dificuldade de materializar o malefício, que não se coaduna com o regime jurídico-administrativo brasileiro. Com efeito, existem formas de se majorar e captar as intenções das pessoas. Logicamente que só o interesse público é capaz de justificar o enveredamento da ciência jurídica pelo caminho das recônditas intenções do agente público. E, nesse caminhar, a comprovação do desvio de finalidade é matéria da maior importância para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

Com o advento e disseminação do correio eletrônico (e-mail institucional), o registro escrito, imediato, objetivo e econômico dos atos administrativos tornou possível manter uma cultura de alerta contra os abusos de autoridade, sem no entanto, parecer paranoia do servidor que cultiva essa conduta, pois, de fato, assim agindo estará apenas cumprindo o que o sistema jurídico-administrativo brasileiro ordena, ou seja, observar e fomentar os princípios do formalismo moderado, da publicidade, da economicidade e da eficiência, sem correr o risco de alimentar burocracias desnecessárias, que tanto atrasam o já combalido serviço público brasileiro. Portanto, reformar a Constituição para torná-la menos democrática e, assim, deixarmos de ser taxados de hipócritas não é a melhor solução; nossas atitudes é que devem mudar para aproximarem-se ao máximo dos cânones Constitucionais.

 

Referências
ALKIMIN, Maria Aparecida. Assédio moral na relação de trabalho. 3ª edição. Curitiba: Juruá, 2009.
BARBOSA, Deuzete Ferreira. Assédio moral (estrutural) nas escolas públicas do município de Macapá: uma consequência espontânea da administração patrimonialista. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=16617&revista_caderno=4>. Acesso em: 12 de junho de 2017.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27ª edição revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Atlas, 2014.
CNJ. Resolução nº 199, de 7 de setembro de 2017. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n199-07-10-2014-presidncia.pdf>. Acesso em: 26 de junho de 2017.
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Notas
[1]Espécie de assédio moral vislumbrado e sistematizado pela bacharela em direito Deuzete Ferreira Barbosa, em monografia para obtenção da graduação da Faculdade Estácio de Macapá/SEAMA, em 2016. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=16617&revista_caderno=4 >. Acesso em 24 de maio de 2017.

[2]Disponível em: http://observatory-elites.org/wp-content/uploads/2012/06/newsletter-Observatorio-v.-2-n.-9.pdf. Acesso em 12 de junho de 2017.

[3]Acessível em: https://cleazevo.jusbrasil.com.br/noticias/423323681/mp-brasileiro-elitista-e-o-mais-caro-do-mundo?ref=topic_feed. Acesso em 12 de junho de 2017.

[4]O caboclo é, por vezes, ingênuo ao ser incapaz de perceber a obviedade de o comportamento individual ser maléfico a longo e médio prazos para a coletividade.

[5]Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/05/06/o-brasil-hoje-e-um-grande-desvio-de-finalidade. Acesso em 12 de junho de 2017.

[6]Acessível em: http://www.conjur.com.br/2012-dez-04/peculato-corrupcao-podem-caracterizados-crime-continuado. Acesso em 12 de junho de 2017.

[7]Professor Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor visitante na Universidade de Frankfurt am Main, na Universidade de Buenos Aires e na Universidade Pablo D’Olavide (Sevilha). Professor honorário da Universidade de San Martín (Lima). Pós-doutor pela Universidade de Frankfurt am Main. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

[8] ALKIMIN, Maria Aparecida. Assédio Moral na Relação de Trabalho. 3ª edição. Curitiba: Juruá, 2009.

[9]Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=16617&revista_caderno=4. Acesso em: 05 de julho de 2017

[10]Disponível em : <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=45&data=16/10/2014>. Acesso em 26 de junho de 2017

[11]Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n199-07-10-2014-presidncia.pdf>. Acesso em 26 de junho de 2017

[12] Mário Juruna (Barra do Garças, 3 de setembro de 1943 – Brasília, 18 de julho de 2002) foi um líder indígena e político brasileiro. Filiado ao Partido Democrático Trabalhista – PDT, foi o primeiro e até hoje o único deputado federal indígena do Brasil.

[13]É bom repetir que para efeitos desse trabalho, documento escrito pode ser, preferencialmente, o digitado em sistema informatizado (softwares e aplicativos), ainda que não impressos.


Informações Sobre o Autor

Elias da Costa Farias

Pós-graduado em Direito Público: Constitucional Administrativo e Tributário da Faculdade Estácio de Macapá. Técnico do Ministério Público da União


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