Breve resenha de o conceito de validade e o conflito entre o positivismo jurídico e o direito natural – Alf Ross

Resumo: Neste trabalho busco apresentar este texto de Alf Ross, publicado originalmente na Revista Jurídica de Buenos Aires em 1961. Pelo próprio título já se torna possível esclarecer a tese principal do autor, qual seja, definir o seu conceito de validade, apresentando outros que o mesmo entendeu como pertinentes e sob esse aspecto da validade buscar compreender se há um problema efetivo entre o Positivismo Jurídico e o Direito Natural, duas das mais conhecidas tradições jurídico-doutrinárias. Ao longo da resenha, apresento algumas considerações teóricas sobre o conceito de validade em Ross, bem como sobre a valoração moral de um ordenamento jurídico e a apresentação de um “quasepositivismo” como Direito Natural, procurando estabelecer algumas conexões entre o trabalho deste com o de outros estudiosos do Direito, como Pachukanis; bem como esclarecendo ideias e conceitos utilizados neste trabalho, por exemplo, autores e tradições que ele dialoga, deixando claro que não tenho pretensão de esgotar os temas, mas apenas de mapear as discussões que me parecem relevantes. Por fim, preferi manter a divisão de tópicos utilizada pelo autor neste artigo, acrescentando apenas duas modificações, no primeiro item e no subitem “A Força Obrigatória”.

Palavras chaves: Validade. Positivismo. Direito natural. Quasepositivismo

Abstract: In this paper I try to present this text by Alf Ross, originally published in the Juridical Review of Buenos Aires in 1961. By the title itself it is already possible to clarify the main thesis of the author, that is, to define his concept of validity, presenting others that the same understood as pertinent and under this aspect of validity to seek to understand if there is an effective problem between Legal Positivism and Natural Law, two of the best known juridical-doctrinal traditions. Throughout the review, I present some theoretical considerations about the concept of validity in Ross, as well as on the moral valuation of a legal order and the presentation of a "quasi-positivism" as Natural Law, trying to establish some connections between the latter's work and that of other law scholars, such as Pachukanis; as well as clarifying ideas and concepts used in this work, for example, authors and traditions that he dialogues, making clear that I have no pretension to exhaust the themes, but only to map the discussions that seem relevant to me. Finally, I preferred to keep the topic split used by the author in this article, adding only two modifications, in the first item and in the sub-item "The Mandatory Force".

Key words: Validity. Positivism. Natural Law. Quasi-Positivism

Sumário: Introdução. 1. O Conceito de Validade e O Conflito Entre as Tradições. 2. Um Pouco de Positivismo. 3. Direito Natural. 4. Opondo Juspositivismo e Jusnaturalismo. 4.1. A Força Obrigatória. 5. O Quasepositivismo é um Tipo de Direito Natural. 6. Significados Para a Validade. 7. Kelsen Como Quasepositivista. 8. Comentário Sobre Hart. Breves Conclusões. Referências.

INTRODUÇÃO

Nesta breve resenha de “O Conceito de Validade e o Conflito Entre Positivismo Jurídico e o Direito Natural” procuro abordar da forma mais fiel possível os pontos principais que Alf Ross trabalhou, deixando as reflexões críticas e outros apontamentos para as notas de rodapé, a fim de não prejudicar a leitura daqueles que só almejam estritamente conhecer o texto original, mas em português.

Portanto, estas se mostram de imprescindível leitura para o leitor que não deseja ficar somente com o texto de Ross; ou que almeja consultar os breves diálogos que foram travados com outros pensadores; ou ainda para aquele que deseja maiores esclarecimentos de pontos não desenvolvidos pelo autor no artigo, por exemplo, sobre a doutrina do realismo e do direito natural, a partir de outras visões.

No mais, espero que esta resenha venha a esclarecer um pouco do pensamento de Ross, sobretudo no que tange ao seu conceito de validade.

1. O CONCEITO DE VALIDADE E O CONFLITO ENTRE AS TRADIÇÕES

O autor inicialmente delineia algumas acusações feitas pelos positivistas às doutrinas do direito natural, qualificando-as como crenças baseadas em ideias metafísicas e/ou religiosas, portanto, incompatíveis com o dito pensamento científico[1]. Em seguida apresenta as acusações feitas pelos jusnaturalistas aos positivistas, afirmando que tanto o espírito quanto os valores das leis, que são reais, não seriam cognoscíveis por meio dos sentidos; acusando-os ainda de serem cúmplices do regime nazista.

Para Alf Ross[2], a partir de agora denominado somente de Ross, acredita que estas discussões acontecem porque falta entendimento claro acerca do que seja o Positivismo Jurídico. Dentre os pontos, o mais controverso seria o slogan “A Lei é a Lei”, que é visto sem sentido moral e parcialmente responsável pelo Nazismo, mas, em realidade, nada tem a ver com o Positivismo, sendo, em verdade, uma controvérsia entre as escolas jusnaturalistas divergentes[3]. Como será visto adiante este é o problema do chamado Formalismo Jurídico[4].

Falta unanimidade quanto ao conceito de Positivismo, em geral sendo visto como uma doutrina que contraria a escola do direito natural. Para Ross, o Positivismo em sentido amplo baseia-se nos princípios de uma filosofia empirista[5] e anti-metafísica; ao passo que o Jusnaturalismo, em sentido lato também, estaria baseado na crença de que o Direito não pode ser descrito profundamente em termos de condições empiristas, mas sob uma expressão metafísica, à luz de princípios e ideias inerentes à natureza racional ou divina do homem, apriorísticos e que transcendem o campo dos sentidos.

2. UM POUCO DE POSITIVISMO

Mas o que são princípios empiristas para Ross? Há duas teses que nos ajudam a explicar primeiramente o que constituem o núcleo do Positivismo, sempre o Jurídico aqui, para o autor.

Primeira tese: todo direito é positivo e todo direito natural pertence ao campo da filosofia moral e ética. Essa tese nega que os princípios sejam expressões de verdades, como algo a ser descoberto. A ética, por sua vez, é divida em duas: (i) moral em sentido estrito (refere-se ao fim último do homem) e (ii) direito natural (refere-se aos princípios e normas que devem reger a vida do homem na sociedade civil para que possa realizar o seu destino moral).

Nesse sentido os princípios éticos são princípios da moral ou do direito natural. Só que o Positivismo, segundo Ross, nega a existência de todo conhecimento ético, não podendo existir direito natural da mesma forma que não há moral natural.

A Segunda tese positivista pertence à metodologia do direito: é possível estabelecer a existência e descrever o conteúdo de um direito de certo país em dado momento com apenas uma análise fática empírica, lastreada na observação e interpretação de fatos sociais, prescindindo das ideias de moral e de direito natural. Neste ponto aplica-se a noção de validade[6].

Este termo seria utilizado para significar que o direito possuiria uma espécie de força moral obrigatória (ou intrínseca) que constrange os súditos, mediante a ameaça de sanções, tanto materiais quanto morais, no campo da consciência. Nesta interpretação a validade é uma ideia apriorística, não reduzida empiricamente[7].

Então Ross afirma que se a Ciência do Direito (descrever o Direito em um país) se vê como ciência empírica não pode existir lugar para um conceito deste tipo.

Quais seriam então os fatos a que nos referimos quando falamos da existência de uma regra jurídica? Há várias maneiras de explicá-los, mas todas as tradições positivistas concordam que enunciar a existência de uma regra é enunciar um conjunto de fatos sociais observáveis. A segunda tese positivista aqui apresentada teria o mesmo significado que o grito de Austin: “A existência do direito é uma coisa; outra coisa é seu mérito ou demérito” [8]. Isto significa exatamente que o Direito é um fato, isto é, ele continua sendo tal, as pessoas gostando dele ou não, estando ou não em conflito com princípios do Direito Natural.

Quando se fala que o Positivismo é a doutrina da separação entre o direito e moral é uma ideia enganosa, pois há relações óbvias entre ambas. Ora, as noções morais são um dos fatores causais que influenciam a evolução do direito e este influi, por sua vez, nas ideias e atitudes morais predominantes[9]. Não há razão para negar esta mútua dependência e se isto já tivesse sido compreendido muitas discussões teriam sido evitadas.

Ross discorda ainda de certas doutrinas que afirmam uma concepção elementar dos fatos sociais, que constituiriam o ordenamento. Por exemplo, a interpretação de Austin do direito como uma ordem emanada de uma vontade soberana, que em caso de desobediência, é imposta com o uso da força física. Várias são as doutrinas que derivam deste modelo, como a Teoria da Força Atrás do Direito e a Teoria Mecânica do Processo Judicial.

Este última teoria, a mecânica, nega o direito, vez que tem outras fontes que não a lei e os costumes, descrevendo a atividade judicante do juiz em termos puramente lógico-mecânicos, não deixando margem a uma discrição inteligente ou ao exercício de valorações morais-sociais, sendo vista costumeiramente como o “Dogma Positivista”.

Isso é uma ideia falsa, pois não derivada das premissas empíricas. Não são positivistas no sentido rossiano, uma vez que não baseados na experiência e na observação dos fatos. Portanto, é perfeitamente aceitável uma teoria judicial de interpretação mais inteligente, guiada por valores e sem retornar ao direito natural[10]. Ou seja, alijar-se do formalismo jurídico não é retornar, necessariamente, ao Direito Natural.

3. DIREITO NATURAL

O que se entenderia por Direito Natural? Algumas tradições naturais buscam concepções teológicas, outras no cosmo, na história, na razão antropocêntrica, etc. Elas tanto servem para justificar o absolutismo extremo quanto a democracia mais direta, serviriam, então, para justificar qualquer coisa[11].

A ideia comum destas teorias é a crença de que há princípios universalmente válidos que governam a vida do homem em sociedade, não criados pelos homens, mas descobertos e de observância obrigatória, inclusive para aqueles que não reconhecem a sua existência – é uma metafísica. Por esta razão a validade destas leis e as obrigações que dela decorrem não apontam a nada observável.

Essa validade incondicional e o caráter não psicológico da obrigação são simples consequências do ponto de partida segundo a qual elas são descobertas. Como apontamos, o Direito Natural é considerado a parte da ética geral que se ocupa dos princípios que devem governar a vida do homem em sociedade organizada com seus semelhantes para possibilitar o seu destino moral.

4. OPONDO JUSPOSITIVISMO E JUSNATURALISMO

É bem claro que o Jusnaturalismo e a primeira tese do positivismo são antagônicos porque esta nega o próprio direito natural, sendo um conflito da filosofia moral. O direito natural não passa de uma parte da ética e o positivismo nega todo conhecimento ético. Problema interesse é saber se há conflito do Jusnaturalismo com a segunda tese (uma ordem jurídica é um fato social que pode ser descrito em termos puramente empíricos). Comumente se aceita que há conflito, mas para Ross é mais uma questão de classificação.

O Direito Natural é apresentado como obrigatoriamente conflitante aos postulados empíricos. Para estes, os princípios do direito natural estão necessariamente implícitos no conceito de direito, como a ideia de justiça. Logo, a ordem só é jurídica se encarnar estes princípios em algum grau. Uma ordem não inspirada pela justiça não é uma ordem jurídica, mas uma ordem de força bruta, de um gângster. Qual seria a diferença? Por não estar baseado na justiça careceria de validade ou força obrigatória. Uma ordem tem validade ou força obrigatória porque se baseia na ideia de justiça – modelo de proceder do Jusnaturalismo corrente. Parece então que contraria claramente o Positivismo.

4.1. A Força Obrigatória

Examinemos esta força obrigatória que caracteriza o ordenamento[12]. Não é dever no sentido de pagar uma dívida, em sentido técnico. Nesse sentido, o devedor corre risco de sofrer sanções jurídicas, mas não pode existir sanção pelo ato de não obedecer ao direito, diferente da sanção por não pagar dívida. Ou seja, um dever é sempre um dever de se comportar de certa maneira. E nesse caso a conduta exigida é obedecer ao direito. Como obedecê-lo? Pagando as dívidas, por exemplo.

Portanto, deduzimos que o dever de cumprir as prescrições de uma ordem jurídica é diferente das obrigações prescritas diretamente por esta ordem. A diferença não pode estar na conduta exigida, mas na maneira como estamos obrigados a nos comportar. A força obrigatória inerente a uma ordem jurídica consiste nas obrigações jurídicas de acordo com as regras do sistema. Logo, o dever para o sistema não pode derivar-se do sistema mesmo, mas tem que surgir de normas que estão fora do mesmo.

Isto significa que a validade ou a força obrigatória não é realmente uma qualidade inerente ao sistema jurídico, mas algo derivado dos princípios do direito natural. A afirmação que uma ordem jurídica possui validade ou força obrigatória nada nos diz acerca de obrigações ou fatos jurídicos, mas que expressam as nossas obrigações morais. Portanto, é sobre filosofia moral.

O jusnaturalista se ocupa em saber se certa ordem fática obriga as pessoas também moralmente em sua consciência, se elas têm suficiente compreensão do que a verdadeira moral requer. Mas antes de responder isso é preciso saber se existe certa ordem fática e qual é o seu conteúdo. Em consequência, a pergunta sobre a Validade fundamentalmente pressupõe a tese positivista, ou seja, de que a existência de certo ordenamento jurídico pode ser verificado e seu conteúdo descrito[13], independente de ideias morais ou jusnaturalistas.

Logo, a única questão que pode separar os jusnaturalistas dos juspositivistas é de classificação ou terminologia: uma ordem fática em total desacordo com os princípios de justiça deve ser classificada como ordem jurídica ou este rótulo deve reservar-se para aquelas ordens que em alguma medida se baseiam nos princípios do Direito Natural.

Ross prefere o critério científico e não moral para o direito porque este permite descrever o direito quando, por exemplo, ele argumenta que todo cisne negro é ainda cisne, mesmo que diferente ou feio. Se todos entendem o caráter terminológico, não há discussão séria que possa opor efetivamente estes aportes.

5. O QUASEPOSITIVISMO É UM TIPO DE DIREITO NATURAL

O jusnaturalista está obrigado a conhecer as regras positivas porque não poderá valorá-las como eficazes se previamente não se estabelecer a sua existência e verificar o seu alcance e conteúdo, pois toda valoração pressupõe o conhecimento prévio do objeto.

O positivismo para Ross pode ser Dogmático (extremo) ou Hipotético (Moderado). O dogmático nega qualquer conhecimento ético e em particular um direito natural composto de princípios éticos que podem ser descobertos pela razão humana; e o Hipotético deixa aberta a questão da existência de um direito natural e se limita a afirmar que a resposta não faz diferença para a ciência jurídica.

Segundo Alfred Verdross, jurista austríaco citado por Ross, para o Positivismo o direito possui absoluta validade ou força obrigatória, significando que o Positivismo Dogmático reconhece e aceita sem criticar a autoridade moral de qualquer ordenamento estabelecido, o que seria visto como obediência estúpida. Isto aconteceria porque o positivista nega que a validade do direito provenha do direito natural, sendo “forçado” a admitir que a validade do direito é inerente ao direito positivo como tal, incondicional e absoluto. É um erro grave, consoante Ross.

Para o Positivismo a valoração moral de um ordenamento é uma questão de aceitação pessoal, subjetiva, de valores, não sendo esta ideia contraditória com a compreensão positivista. Verdross[14] é, sem dúvida, um formalista jurídico e não um real positivista, que se baseia no Empirismo.

O Empirismo sim é uma doutrina sobre validade, uma filosofia moral que faz derivar a validade não de princípios abstratos, mas da evolução histórica e das instituições postas. Atitudes como a de Verdross revelam a crença no slogan “A lei é a lei” e logo, toda ordem deveria ser obedecida sem discussão. Se há algo de certo na crença de que o positivismo ratificou o regime nazista tem que vir deste positivismo legalista, formalista, que não passa de uma escola de Direito Natural, que Ross chama de Quase Positivismo.

6. SIGNIFICADOS PARA VALIDADE

Há três significados para Validade: (i) indicar se um ato jurídico tem ou não os efeitos desejados, sendo esta a função interna, fazendo verificar se um ato é válido segundo um sistema de normas dado; (ii) indicar a existência de uma norma ou sistema de normas – a validade neste sentido pontua a existência efetiva dela na realidade, em oposição a algo imaginado, denominado de função externa; e (iii) a validade na ética e no direito natural é atualizada para indicar uma qualidade apriorística, especificamente moral e conhecida como força obrigatória do direito, que dá lugar a uma obrigação moral correspondente[15].

7. KELSEN COMO QUASEPOSITIVISTA

Em termos gerais a existência (Validade) de uma norma é a mesma coisa que a sua eficácia. Afirmar, portanto, que uma regra existe ou um conjunto delas é o mesmo que afirmar a ocorrência de fatos sociais, abrangendo condições psicológicas.

Nesse sentido o termo validade não tem nada a ver com o dever de obediência ao direito, sendo este entendimento do Jusnaturalismo e do Quase Positivismo. Essa noção normativa da validade é verdadeiro instrumento de uma ideologia sustentadora da autoridade do estado. Quando feita por um quase positivista este apoio é incondicional e quando feita por um jusnaturalista está condicionada a alguma harmonia com os princípios do Direito Natural.

A este respeito a Teoria Pura do Direito de Kelsen[16] é uma continuação do pensamento quase positivista, pois Kelsen jamais superou a ideia de que um sistema jurídico estabelecido possui validade no sentido normativo da palavra. A ideia de uma norma ou dever objetivo é exatamente a forma como opera uma filosofia do direito natural, que só possui significado se se aceitam os princípios morais objetivos, apriorísticos, dos quais se derivam os verdadeiros deveres.

Há um pressuposto de que a norma fundamental de Kelsen[17] [18]proporciona a Validade ao sistema fático, que o autor atribui ao pensamento jurídico, que por sua vez refere-se às ideias e crenças sustentadas pelos juristas (logo, refletem as emoções e ideologias deles e, portanto, não digna de confiança para uma análise lógica).

8. COMENTÁRIO SOBRE HART

Diante do exposto, as duas teses principais de Ross referem-se à Validade: (i) se validade é vista como qualidade moral de um ordenamento que outorga força obrigatória às obrigações do sistema, o mesmo não faz sentido em uma ciência do direito empirista e (ii) a palavra validade é utilizada para designar a existência (realidade, ocorrência) de uma norma ou sistema de normas, devendo ser vista como referência abreviada a um complexo de fatos sociais (conduta dos juízes e dos aplicadores do Direito[19]), de forma que torna-se possível realizar predições sobre a forma de comportamento dos juízes e tribunais.

H. Hart em “Realismo Escandinavo[20]” formulou uma crítica ao conceito de validade de Ross[21], mas para o próprio Ross não haveria desacordo, sendo essa crítica baseada tão somente no fato linguístico da palavra válido, que usaria validade no primeiro e terceiro sentidos acima explicados.

Em clara oposição com Kelsen, Hart rechaça a ideia de que a existência de um sistema jurídico é sua validade expressada em uma norma fundamental que exorta os indivíduos a obedecer ao direito. Hart disse com acerto, segundo Ross, que é enganoso falar de uma regra que prescreve outra regra a ser obedecida[22].

Esta oposição hartiana surge desta proposição: decidir se há ou não Regra de Reconhecimento e qual é o seu conteúdo é decidir quais são os critérios de validade de um sistema jurídico dado, sendo esta problema considerado como empírico ao longo de toda a obra e também complexo. Portanto, a norma de reconhecimento de Hart é um problema empírico. Nesse sentido estaria em completa harmonia com a ideia básica de Ross apresentada em Direito e Justiça.

Indispensável se faz elucidar melhor este ponto. A regra de reconhecimento funciona como espécie de regra última ou mesmo critério supremo do sistema jurídico – este ponto já é deveras conhecido. É o próprio Hart em sua obra que reiteradamente afirma quanto a existência da regra de reconhecimento como sendo um problema ou questão de fato, na acepção que a existência desta se averígua em sua própria aplicação fática, no efetivo momento em que a prática dos membros do sistema jurídico (advogados, promotores, juízes, defensores, entre outros) a utiliza na identificação do Direito por certos critérios[23].

Pelo exposto no tópico, verifica-se através de dedução que a validade da regra de reconhecimento não pode ser questionada ou que o problema da validade para esta regra não se apresenta da mesma forma verificada para as demais regras. Então não se afirmaria a sua validade, mas sim a utilização desta para os fins aos quais se destina.

Prosseguindo nesta análise, excluindo a regra de conhecimento dos testes de validade, ela afirmar-se-ia como critério supremo de validade de todas as outras regras[24]. É o critério supremo, não sujeito à validade porque, estando uma regra adequada às suas exigências, ela terá reconhecido o seu estatuto de Direito, mesmo que esteja em desacordo com outros critérios de juridicidade. Nessa toada, qualquer conflito existente no ordenamento entre a regra de conhecimento e as demais, prevalece as regras em concordância com os padrões da Regra de Reconhecimento, sendo afirmada pelos cumpridores e aplicadores do direito como regra última de validade, evitando o conhecido problema do regresso ad infinitum.

Quando mais adiante Hart sustenta que ao afirmar que um sistema jurídico existe está se referindo, de forma comprimida, a uma quantidade de fatos sociais heterogêneos e que a verdade desta afirmação pode ser estabelecida mediante a referência à prática efetiva, isto é, a maneira como os tribunais identificam o que deve ser considerado e a aceitação geral ou aquiescência nestas identificações.

Portanto e por fim, a similitude entre as visões de Hart e de Ross torna-se ainda mais notável, mas como não temos a pretensão de esgotar o tema em questão, não realizamos a análise propriamente dita das respostas de Hart quanto a essa aproximação indicada pelo próprio Ross.

BREVES CONCLUSÕES

Neste tópico, finalizando a resenha, tento apresentar brevemente alguns dos pontos de destaque do texto, somente para facilitar a compreensão deste artigo de Ross, no qual ele apresenta o que seria validade para ele, diferenciando-se claramente da visão positivista tradicional, quando incrementa à noção de existência aquela outra de aplicabilidade da norma pelos aplicadores do direito. Nesse sentido, esta parece ser a tese-mor do autor, sendo todas as demais consequências ou efeitos destas, que passarei a elencá-las.

Um dos objetivos gerais do autor também é diminuir as fronteiras existentes entre as correntes jurídicas do Positivismo e do Naturalismo, tarefa difícil tendo em vista a falta de unanimidade na definição destas correntes e para tal ação Ross elenca os seus princípios empiristas, defendidos como as duas teses fundamentais do Positivismo, quais sejam, (i) todo direito é positivo e (ii) possibilidade de descrição de um conteúdo de um direito de certa localidade em certo momento apenas levando-se em consideração os fatos, a empiria da realidade (também conhecida como questão metodológica).

Com relação à separação entre direito e moral, Ross é bastante claro afirmando que o Positivismo nunca pretendeu isso, sendo necessário afastar-se de um formalismo extremo e sem recair novamente no Direito Natural, relembrando que o autor critica o Jusnaturalismo veemente, quando argumenta que este pode servir para justificar qualquer questão.

Prosseguindo no texto Ross aponta para uma posição algo conciliadora: o juspositivismo não é incompatível com o jusnaturalismo, pois o ordenamento jurídico é válido e tem força obrigatória somente quando se baseia em ideal de justiça. Neste ponto parece uma negação do Positivismo, mas é justamente o que ele tenta desconstruir.

Para Ross o direito não se auto-justifica (como em Kelsen e a sua Grundnorm), pois o Direito se apresenta como a maneira pela qual estamos obrigados a cumprir certos deveres e a sua justificativa, sua força e validez são derivadas do Direito Natural (questões de filosofia moral). Por isso um “naturalista” não tem qualquer motivo para rejeitar a tese positivista de que o direito é um fato social e que pode ser descrito segundo critérios puramente empíricos, sem se referir aos critérios de validade (ou validez).

Em seguida o autor apresenta as doutrinas de “quasepositivismo”, que se aproximam do Direito Natural, como a ideia de força moral obrigatória do direito (seguir cegamente a lei somente porque é a lei – a lei é a lei). Ora, para Ross, o verdadeiro positivista não se preocupa com este tipo de validade porque a valoração moral de um sistema jurídico é algo subjetivo, de aceitação pessoal.

Ele encerra o seu artigo advogando que a existência de um ordenamento jurídico requer a existência de um conjunto de atos sociais observáveis empiricamente e isso se revela na prática comportamental dos tribunais, aproximando a sua posição da de Hart, lastreada exatamente no seu “conceito-mor” de validade empírica, que exige o conjunto de atos sociais.

 

Referências
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Notas
[1] Sobre especificamente o Realismo Jurídico de Ross, ver a resenha RODRIGUES, 2016, p. 2 e seguintes.
Ver também: ROBLEDO, 2014. A autora aborda didaticamente alguns pontos da obra Direito e Justiça de Alf Ross, diferenciando os diversos tipos de Realismo.

[2] Ross, como designado na nota acima, era um realista, mas especificamente integrante da corrente do realismo escandinavo, que basicamente, consoante ANDAKU, 2005, p. 23 “enquadradando-se entre as correntes do neo-empirismo jurídico, distingue-se de outras doutrinas por sua posição empiricista radical, que não se limita ao plano estritamente jurídico. Caracteriza-se por enfatizar a importância que o fato psicológico da ‘crença’ assume no mecanismo da relação ‘jurídica’ e na representação corrente desse mecanismo. Entre seus representantes, podemos citar Axel Hägeström, Vilhelm Lundstedt, Karl Olivecrona e Alf Ross. Essa corrente realista é muito variada quanto às linhas de conteúdo, mas pode-se divisar uma identidade básica no que respeita às preocupações antimetafísicas de seus autores”.

[3] DWORKIN, 1985, p. 115: “O século XX, submerso nas atrocidades das duas Grandes Guerras, procurava respostas acalentadoras ao espetáculo do terror que havia recaído sobre a Europa. […]  Necessitavam de um bode expiatório sobre o qual recaísse toda a responsabilidade e, por isso, foram categóricos em suas afirmações aqueles que atribuíram toda a culpa ao Positivismo Jurídico, que por supostamente transformar o juiz em escravo da lei, teria abdicado de qualquer possibilidade de exercício de um direito de resistência frente às injustiças atentadas. Sob esse prisma, o legalismo seria equivocado e profundamente corruptor do Império do Direito.”

[4] Ver mais desta discussão, por exemplo, em BAHIA, 2013. O autor discorre em sua Conclusão: “Para tanto, atribuíram ao formalismo jurídico que dava alicerce às teorias positivistas, a responsabilidade pela ascensão e manutenção do totalitarismo, uma vez que o caráter formal do direito permitiria legitimar qualquer vontade política. Assim, os antipositivistas abrolharam como defensores inveterados dos valores da justiça, vertendo sobre o juspositivismo todo o peso de um retrocesso teórico ortodoxo”.
Ele entende, diferindo algo de Ross, que nem mesmo pode-se responsabilizar o formalismo, que embasa a corrente do positivismo que ele adota; mas entende, agora como Ross, que isso foi um problema entre os defensores jusnaturalistas.

[5] LOCKE, p. 57 e seguintes (grifos nossos): “2. Todas as idéias derivam da sensação ou reflexão. Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma idéia; como ela será suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nossos entendimentos com todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes de conhecimento jorram todas as nossas idéias, ou as que possivelmente teremos.”
Neste livro, Locke descreve a mente humana como uma tábula rasa (ardósia em branco), aonde, por meio da experiência, as ideias vão sendo paulatinamente gravadas na mente do ser humano. É considerado para muitos o Pai do Empirismo Britânico, contrapondo-se ao Racionalismo dominante de então.
Como ficou claro a partir da leitura do excerto, Locke acredita que todos os seres humanos nascem sem nenhum conhecimento e todo o processo do conhecer, do compreender, do apreender, independente do tipo de conhecimento (ou inteligência), será adquirido por meio da experiência. Interessante mencionar outra teoria, com a qual ela discute, que é o inatismo de Descartes, que também está presente em Leibniz e outros; e no campo da filosofia política resultou na igualdade natural entre todos os homens, desde o nascimento, uma vez que todos nasceriam sem nenhum tipo de ideia, de conhecimento, de algum conteúdo mental prévio, portanto, iguais.

[6] As análises marxistas do Direito questiona exatamente a função descritiva realizada pelo Positivismo Jurídico, uma vez que esta função não prescinde da abstração, esta entendida e voltada para uma formação de uma ciência jurídica, ou seja, a abstração que não possui elementos sociais (da realidade) torna-se vazia, não levando em consideração a tese fundamental do Marxismo, que é a existência das classes sociais e por conta desta “falha” (ou dessa desconsideração) não consegue analisar a disputa de poder existente na vida concreta, material, tangível. Para uma crítica Marxista do Direito, razoável consultar, dentre vários, a obra de E. Pachukanis, Teoria Geral do Direito e Marxismo.
Em uma das passagens da obra ele se refere assim ao Positivismo: "uma tal teoria geral do direito, que nada explica, que a priori volta as costas às realidades concretas, ou seja, à vida social, e que se preocupa com as normas sem se importar com sua origem […]". PACHUKANIS, 1988, p. 19.
Mais interessante ainda, o que infelizmente não será aqui analisado, é a possível convergência de alguns postulados de Alf Ross com as exigências marxistas, sobretudo quando aquele realiza ataques a Kelsen, por exemplo, quanto a necessidade, para Ross, de se considerar a vida substancial, o que de fato acontece no mundo, para se analisar o Direito, não podendo este prescindir da vida real, vivida, como pode se notar no Marxismo e o seu apelo à vida material.

[7] Ainda no contraponto com a corrente marxista do Direito, tem-se que esta interroga a operação funcional descritiva, que convoca a abstração, elevando-a ao patamar de uma necessidade para certo fim, qual seja, um mecanismo de formação de uma ciência jurídica, uma vez que, segundo os teóricos do Marxismo, uma abstração (jurídica no caso) que não dialoga com as ciências sociais, com as práticas materiais de existência, torna-se vazia, tendo em vista, por exemplo, o abandono da ideia de um conflito de classes da sociedade e por isso não podendo investigar, estudar o jogo de poder inerente a sociedade capitalista. Conferir mais em PACHUKANIS, 1988, p. 30.

[8] AUSTIN, 1955.

[9] Para o autor as valorações morais são incorporadas no direito a partir dos standards jurídicos. Os standards ou parâmetros correspondem a verdadeiras diretrizes para a tomada de decisões, tanto judiciais quanto administrativas ou mesmo ainda legislativas.

[10] Em ROSS, 2000, p. 79 e 80 o autor aponta neste mesmo sentido, qual seja, de que não coaduna com os positivismos mais elementares que afirmam ser o direito um conjunto de ordens proferidas por um poder, que pode, ao se deparar com uma desobediência (não cumprimento ou observância das regras do sistema) usar de força física para impô-las àquele que desobedece. E aí faz a referência a essas “teorias imperativistas”, como as da mecânica do processo judicial, tendo em vista que um conjunto teórico não pode lastrear-se apenas em deduções lógicas, que restrinjam as fontes de direito, em construções meramente conceituais e não práticas – essas podem ser positivistas no sentido de serem expressas em frases bem definidas ou mesmo em decisões arbitrárias, mas não no significado de baseadas no empirismo das observações dos fatos sociais, que é o sentido por ele utilizado.

[11] É preciso deixar claro que esta é a visão de Ross sobre o Direito Natural, sendo que a discussão é mais profunda do que a apresentada por ele, bastando pesquisar sobre as doutrinas jusnaturalistas. Atualmente, John Finnis é o maior defensor dessa corrente.
Em FINNIS, 2011, p. 198 e seguintes, o autor versará sobre direitos, e logo na primeira frase é exposto uma ideia fundamental, qual seja, a de que os direitos atualmente chamados de humanos seriam, em realidade, direitos naturais. Isso porque a gramática atual dos direitos em geral apresentaria uma forma de expressar praticamente todos os “requisitos de razoabilidade prática” (conceito importante), que, por sua vez, deriva de razoabilidade no entendimento de Tomás de Aquino. Este pontua o seguinte: a razoabilidade é o critério de conformidade à natureza humana e o que lhe é oposto seria não razoável. A partir desta chave de compreensão é que se poderia definir o que seria certo ou errado, a partir de uma perspectiva da moralidade, isto é, questionando se tal ação é o ou não razoável, em que pese a extrema dificuldade de se definir isto.
Ele traz também, por exemplo, dentre muitas outras, uma discussão a respeito dos direitos e deveres e se um é anterior ao outro, bem como acerca da palavra direito. No que tange ao primeiro ele defende que ambos nascem simultaneamente, a partir, sobretudo de uma leitura de Hobbes, tendo em vista que “jus” seria a liberdade de fazer algo ou de abster-se de; e que a pessoa que não possui deveres a cumprir não teria direitos a exigir e daí ambos serem simultâneos.

[12] Em uma visão algo diferente, usando termos distintos, identificamos que NINO, 2010, p. 36 e seguintes, defende que o “Positivismo Ideológico” é que é a tese defensora do direito posto como possuidor de uma validade ou força obrigatória, devendo ser forçosamente obedecidas pelas pessoas e aplicadas pelo aparato judicial (e talvez administrativo, quanto ao cumprimento) previsto pelo ordenamento, independente do conteúdo das normas. Por isso é que para Nino esse positivismo ideológico é que é associado a máxima “a lei é a lei” e sendo parte de uma estrutura normativa é direito e logo, deve ser obedecida. É chamado de ideológico ou moral porque não é de natureza conceitual, objetivando definir o direito mais pela aplicação deste e não a partir de uma descrição, como os positivistas gostam de falar.

[13] NINO, 2010, p. 42 e seguintes, esclarece nesse mesmo sentido o que ele chama de Positivismo Metodológico ou Conceitual, segundo o qual o conceito de direito deve ser tomado, analisado, observado não com base em elementos valorativos, mas tão somente a partir de elementos descritivos. Desse processo resultam proposições sobre as quais, supostamente, não haveria a implicação de juízos de valor, sendo verificáveis empiricamente. Por isso na linguagem positivista é chamada de tese de definição ou conceitual.
Claro que, ao nosso humilde olhar, quando você descreve algo você já está realizando uma seleção dos objetos ou elementos que deseja selecionar, isto é, operando a partir de uma série de recortes que vão, obviamente, influenciar o seu resultado, nos permitindo dizer que não há descrição puramente neutra, sem nenhum juízo pessoal, sem nenhuma carga de identidade ou de “eu”.

[14] Alfred Verdross foi um jurista austríaco, professor da Academia de Haia de Direito Internacional, que teve como uma das suas grandes obras O Fundamento do Direito Internacional.

[15] Prescindíveis maiores explicações sobre estes três significados de validade, uma vez que ao longo do artigo estes três sentidos tornam-se claros, isto é, são trabalhados em outros parágrafos. Alongá-los seria perda de tempo.

[16] KELSEN, 2015. Ao longo livro Kelsen vai expondo o seu entendimento acerca da Ciência do Direito. Esta interpretação de Alf Ross é inevitável e se confirma pela maneira como Kelsen explica o significado da reiterada admoestação de comportar-se como a norma requer.

[17] Norma fundamental é uma espécie de norma pressuposta no plano lógico jurídico, sendo fundamento último de validade do ordenamento. Kelsen, influenciado por Immanuel Kant, define o ordenamento como um conjunto de normas hierarquizadas, estruturadas, portanto, de forma escalonada, com ordem definida. Mas não sendo a hierarquia infinita, ilimitada, a norma mais superior desse escalonamento verticalizado não possui como critério de validade outra norma mais superior, sendo mesmo o ponto máximo, delimitador. Por conta disso ela precisaria ser pressuposta, não podendo ser formulada por nenhuma autoridade do ordenamento, pois a competência para tal precisaria estar posta em uma norma ainda mais elevada. Em KELSEN, 2015, p. 217: “Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. […] É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa”.

[18] Há muitas outras críticas a essa ideia de norma fundamental, por exemplo a de Hart. Segundo HART, 2012, 376: “A teoria da Norma Fundamental de Kelsen foi alvo de diversas críticas. Hart dispôs que: “A norma fundamental de Kelsen tem, num certo sentido, sempre o mesmo conteúdo; pois ela é, em todos os sistemas jurídicos, simplesmente a norma que estipula que a constituição ou aquele que “formularam a primeira constituição” tem de ser obedecidos (General Theory, pp. 115-6). Essa aparência de uniformidade e simplicidade pode ser enganosa. […]”.
Hart, a partir da criação da sua Regra de Reconhecimento, ofertou algo semelhante à Norma Fundamental, tendo em vista que aquela regra (de reconhecimento) consiste na regra última do ordenamento, estabelecendo, por exemplo, quais as normas jurídicas outras que devem ser reconhecidas como válidas. Ela não se apresenta de forma explícita, uma vez que é fruto do comportamento dos agentes públicos, incluindo os tribunais (Poder Judiciário em geral) e também dos particulares, daí decorrendo o olhar sobre Hart como sendo um “defensor” de um direito como prática social, pois o seu critério último de validade baseia-se (ou se depreende) de uma conduta social que reconhece o que pode ser caracterizado como direito válido, em certa territorialidade geográfica e sob uma temporalidade definida. Todavia, há algumas diferenças entre a Regra de Reconhecimento e a Norma Fundamental, pois Hart a vê como resultado de uma prática social, possibilitando que assuma um caráter empírico, enquanto que a Norma Fundamental de Kelsen possuiria uma existência não comprovada, ficcional, algo metafísica, na qual a noção de validade é central. Há várias outras diferenças como: a existência da regra de reconhecimento ser uma questão de fato; a possibilidade de inclusão de vários critérios para a validade; o fornecimento de uma unidade à estrutura jurídico-normativa; e sua validade não poder ser demonstrada, pois é desnecessário, ela simplesmente existe.

[19] Em Direito e Justiça de Alf Ross o autor explica melhor esta questão.

[20] No pensamento antimetafísico de Ross, fortíssimo, é perceptível a influência igualmente intensa de Axel Hägerström, delineando a estrutura conteudística da sua filosofia. Aponta ANDAKU, 2005, p. 71, “… toda a base ideológica dos escritos do autor dinamarquês originou-se das leituras das ideias destes autores, em especial Hägeström, que pode ser considerado seu mestre, bem como de Ludstedt e Olivecrona. Assim, foi Hägeström quem iniciou a corrente do Realismo Escandinavo, com suas ideias antimetafísicas, tendo influenciado decisivamente os outros três integrantes da corrente, tendo estes, todavia, seguidos por caminhos diferentes, ainda que paralelos em suas ideias”.

[21] HART, 1983. Ver as referências.

[22] Explicações mais detalhadas em ROSS, 2000, p. 246.

[23] Nesse sentido: “Uma tal questão não pode ser posta quanto à validade da própria regra de reconhecimento que faculta os critérios, esta não pode ser válida ou inválida, mas é simplesmente aceita como apropriada para tal utilização”. HART, 2012, p. 120.

[24] Para maiores elucidações sobre a Norma de Reconhecimento, ver em KOZICKI, PUGLIESE, 2017, na nota 56: “Hart chama atenção ao fato de que não devemos confundir critério supremo com poder legislativo, juridicamente ilimitado. O poder legislativo, quando aparentemente possui a autoridade última de ditar ou regras normas, a possui porque a própria regra de reconhecimento lhe faculta tal autonomia. Ou seja, a regra de reconhecimento é o critério supremo a facultar que o poder legislativo atue de tal ou qual forma”. Aqui seria ainda possível estabelecer relações entre a regra de reconhecimento e o Poder Constituinte, cujo titular é o próprio indivíduo, enquanto integrante de um conjunto, de uma multidão.


Informações Sobre o Autor

Dorival Fagundes Cotrim Júnior

Mestrando em Direito Constitucional e Teoria do Estado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC Rio. Graduado em Direito na Faculdade Nacional de Direito FND/UFRJ. Advogado atuante em Administrativo e Civil


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